Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

memória

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Amor maldito

Trinta anos do filme lésbico brasileiro que pouca gente viu. Por Pedro “Pepa” Silva

Tudo que eu tenho guardado
sagrado secreto e noturno
a cor do ventre e do coração
da ciência e da proibição”

Vange Leonel, “Vermelho”

 

 

O imaginário lésbico já fazia parte do cinema nacional quando Amor maldito estreou em 13 de agosto de 1984, numa sala da Galeria Olido, centro de São Paulo. É o filme de Adélia Sampaio, porém, que carrega o peso de ser o primeiro de temática inteiramente lésbica – e a fama de ser um filme pouco visto.

 

 

Hey! Se você não gosta de spoilers e tem interesse em ver o filme, dá play aí e volta mais tarde pra ler o resto!

 

 

O divertido começo, com os créditos surgindo em meio à ostentação do cetro, da coroa e da faixa Miss Simpatia, é logo interrompido. Já sabemos que não haverá lugar para um final feliz. Em cena meio tosca, meio teatral, Sueli, interpretada por Wilma Dias (a mesma que tentou ser concorrente da Gretchen), se joga da janela do apartamento de Fernanda (a loira e canastra Monique Lafond). Acusada de assassinato, Fernanda será julgada (leia-se, atormentada pelo chorume moralista). E é esse julgamento que toma a maior parte do filme.

 

 

 

Crônica exagerada da lesbofobia nacional

 

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Tudo que sabemos sobre as personagens principais vai sendo desenrolado a partir dos depoimentos (sinceros ou mentirosos) das testemunhas arroladas pela defesa e pela acusação. Nos flashbacks, acompanhamos desde o primeiro contato entre Sueli (então candidata a miss) e Fernanda até a festa de casamento das duas. Casamento, aliás, com direito a certidão falsa usada como prova da imoralidade no julgamento: “Fernanda é marido de Sueli”, brada a acusação.

 
 

Não se trata de uma história de descoberta do prazer ou da homossexualidade. O que se costura nos depoimentos é o encontro de uma mulher moderna, assumida, segura em sua sexualidade, com uma jovem superficial, perdida e inconsequente. Filha de pastor evangélico hipócrita (Emiliano Queiroz, ótimo, mesmo que o texto se reduza a uma meia dúzia de gritos de “Satanás!”), Sueli se envolve com um jornalista, fica grávida e é abandonada por ele. Seu desespero resulta em sua morte.

 

 

Esse exagero melodramático, já sentido desde o título, também ajuda a criar a redenção de Fernanda (que ao longo de todo o filme já parecia condenada de antemão, por trás de grades e colunas). Além disso, se todos usam máscaras e se apoiam na hipocrisia social, Fernanda é a única a possuir uma integridade de caráter: é uma mulher livre, assumida. Julgada só por homens, tem a certeza de ser redimida pelo amor que sentiu por Sueli. “Só eu te amei”, ela escreve na lápide do túmulo de Sueli, no final melancólico.

 

 

Teatral em sua totalidade, Amor maldito usa do exagero, sim, mas com o objetivo de delinear uma crônica da lesbofobia nacional. Sueli teria sido “desencaminhada pelas más companhias”. O apartamento de Fernanda (com direito a pôster do Che Guevara atrás da porta) seria palco de “orgias”. A relação das duas feriria “a virtude da moral”, “a família brasileira”. Em suma, uma sucessão dos clichês que insistem em sobreviver na fala de alguns canalhas nacionais de hoje em dia…

 

 

 

Ninguém sabe, ninguém viu

 

 

Primeira experiência na direção da mineira-carioca Adélia Sampaio, Amor maldito teve roteiro de José Louzeiro, que buscou na crônica jornalística um caso semelhante ocorrido em Jacarepaguá. O contexto da produção é marcado pelas agruras da indústria cinematográfica nacional (naquele momento, especialmente em São Paulo, assolada pela onda do filme pornográfico). Lidando com tema tabu, teve de ser feito num esquema cooperativo (na conhecida “broderagem”, que então era mais comum à produção teatral).

 

 

É uma pena, no entanto, que o “Stonewall brasileiro” (a revolta do Ferro’s Bar, ocorrida um ano antes, em agosto de 1983) não tenha criado um clima tão receptivo à história de Amor maldito (e me pergunto como terá sido também com o drama lésbico Lianna, de John Sayles, que passou por aqui mais ou menos na mesma época, na 8ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 1984).

 

 

A repercussão de Amor maldito foi quase nula. Salvo uma resenha de Leon Cakoff na Folha de S.Paulo (apontando o filme como um oásis no meio de tanto filme pornográfico), o que se vê na imprensa da época são sinopses pouco precisas, algumas quase envergonhadas. Pouco há para ler sobre o filme. Os profissionais envolvidos na produção falaram sempre superficialmente sobre ele e não sei de trabalhos acadêmicos que o analisem mais detidamente (eu mesmo só cheguei ao filme por meio de um texto da crítica Andrea Ormond, lá pra 2010…).

 

 

Creio que Amor maldito, com todos os seus problemas e limitações, merece ser reconhecido como um marco dentro do imaginário lésbico gestado pela produção audiovisual brasileira. Ainda que não aprofunde, por exemplo, a reflexão sobre a lesbofobia que sustenta seu conflito, o filme de Adélia Sampaio tem a seu favor o fato de ser um olhar feminino sobre uma relação homossexual entre duas mulheres. E, claro, a vantagem de não sucumbir ao artifício tão comum no cinema brasileiro de usar a relação lésbica como chamariz e objeto do desejo masculino.

 

 

Neste mês, em que falamos e pensamos sobre a visibilidade lésbica, nada melhor que refletir sobre as obras que, mesmo problemáticas, fizeram visíveis essas mulheres, esse amor.

Leia outros textos de Pedro “Pepa” Silva e da seção Memória.

Ilustração: Bárbara Scarambone.

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