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Afinal de contas, a gente nasce heterossexual?
Sobre ex-gays, ex-héteros e ex-héteros que voltam a ser héteros. Por Lindberg Filho
“Você prefere ser natural?”
“Às vezes. Mas ser natural é uma pose muito difícil de manter.”
Oscar Wilde
Não é estranho se espantar ao ler o título deste texto ou até mesmo pensar que houve um erro de digitação. Isso acontece porque, apesar de ser muito normal presenciarmos acalorados debates acerca da natureza das relações homossexuais, pouquíssimas são as oportunidades que temos para discutir ou, melhor dizendo, suspeitar da naturalidade que paira e que, de certa forma, protege a heterossexualidade. E é justamente suspeitar da naturalidade das categorias sexuais identitárias o que eu me disponho a fazer neste texto.
Como ponto de partida, quero brevemente analisar um trecho da entrevista concedida pelo pastor Silas Malafaia à jornalista Marília Gabriela em janeiro de 2013, na qual ele, que é um dos principais porta-vozes da ofensiva política cristã e homofóbica do momento, fez a seguinte declaração:
“Na minha igreja ele [Barack Obama] não teria sido reeleito. Vou explicar uma coisa: ninguém nasce gay, homossexualismo é um comportamento. Quem pode dizer que alguém nasce gay ou não? Não é a psicologia, é a genética. A única ciência que pode dizer isso é a biologia. Não existe ordem cromossômica homossexual, existe ordem cromossômica de macho e fêmea”.
De acordo com os defensores da teologia homofóbica (que é facilmente identificada através da famosa combinação de desonestidade intelectual com uma visão fanática da moral cristã), as práticas homossexuais podem ser condenadas e combatidas, pois elas são desvios morais humanos que nada têm a ver com uma condição biológica. Na verdade, esse discurso funciona como um mecanismo de hierarquização e avaliação de práticas sexuais, particularmente porque ele atribui um caráter natural e de prestígio às relações heterossexuais, ao passo que associa a homossexualidade a um comportamento essencialmente inatural, subversivo e patológico.
Afinal de contas, o pastor está correto ao afirmar que a homossexualidade é um comportamento, que ninguém nasce homossexual e que existem apenas ordens cromossômicas de macho e fêmea? Por incrível que pareça, de certa forma ele está certo.
A história da sexualidade
Por muito tempo, cientistas com boas intenções e militantes LGBT têm tentado combater esses discursos buscando demonstrar, com relatos e pesquisas de mapeamento genético e cerebral, através de observações de crianças e com tantas outras experiências científicas dos mais variados tipos, que o ser humano nasce homossexual e que por isso a homossexualidade deve ser aceita como uma condição biológica.
Porém, tal linha de pensamento tem se mostrado difícil de sustentar, principalmente devido a uma ausência de evidência científica irrefutável que comprove a existência de um aparato biológico que determine a sexualidade humana. É importante ressaltar que, dada essa ausência, não apenas o pastor, mas também todos os outros guardiões da – aparentemente frágil e necessitada de proteção – heterossexualidade têm colocado-a como a ordem natural das coisas, pois, embora admitam que haja uma carência tanto de ordem cromossômica heterossexual como de homossexual, eles se apoiam na determinação biológica do sexo (macho e fêmea) para dar suporte ao direcionamento heterossexual das práticas sexuais.
Acredito que ambas as argumentações são ineficazes, porque elas não só aceitam, mas também aprofundam uma divisão binária, imutável e castradora, que restringe a diversidade sexual humana a duas categorias totalizantes: heterossexual e homossexual – as quais, diga-se de passagem, não possuem nada de natural e só passaram a existir como conceitos no final do século 19 (apesar de práticas hétero e homossexuais serem tão antigas quanto a história da humanidade).
Neste momento é bom que comecemos a diferenciar sexo de sexualidade. Simplisticamente falando, o primeiro é a condição biologicamente determinada do corpo humano, enquanto a segunda é o conjunto de performances sexuais que esse corpo é capaz de executar. Tendo isso em mente podemos afirmar que, se por um lado a homossexualidade e a heterossexualidade podem ser vistas como naturais ao ser humano, especialmente se as enxergamos como performances sexuais possíveis, por outro lado as categorias identitárias homossexual e heterossexual são artificiais e culturalmente fabricadas para determinar e restringir liberdades sexuais individuais. Não quero dizer com isso que elas sejam descartáveis ou que elas sejam o problema. Na verdade, o cerne do problema se localiza no modo como essas categorias operam no plano social e material.
Nesse sentido, fica mais preciso dizer que um dos problemas centrais do discurso do pastor não está em duvidar se alguém nasce homossexual, tampouco em dizer que a homossexualidade é um comportamento, pois basicamente a homossexualidade, bem como a heterossexualidade, é um comportamento sexual possível. O ponto mais frágil e central dos discursos homofóbicos mais correntes é a imposição da heterossexualidade como a única prática possível e natural.
Tendências hétero-passivas
Se a heterossexualidade fosse algo tão natural e biologicamente inevitável como o crescimento de um braço ou uma perna, por que durante toda a história da humanidade existiram homossexuais? Se a heterossexualidade é a única ordem natural das coisas, por que comportamentos homossexuais são verificados em quase todas as espécies de animais? Se a heterossexualidade é tão inata e normal, por que ela tem que ser garantida muitas vezes através da violência familiar contra crianças, jovens e adultos que procuram expandir suas experiências sexuais para além dos limites da heterossexualidade? Se a heterossexualidade é tão natural, por que é tão necessário que haja uma imensa propaganda dela diariamente, desde o dia em que nascemos e em todos os âmbitos sociais? E por que, mesmo com toda essa propaganda, continuam existindo não só homossexuais, mas também heterossexuais que constantemente a subvertem?
O processo de desenvolvimento de estruturas ideológicas patriarcais, necessidades materiais e diversos processos históricos (que não discutirei aqui por razões de espaço e foco) levaram à institucionalização da heterossexualidade como a forma hegemônica e mais socialmente privilegiada de se relacionar sexual e afetivamente, sobretudo no âmbito público. As noções de heterossexual e homossexual foram forjadas a partir da necessidade de diferenciar socialmente a primeira da segunda, já que, em muitas civilizações e durante muitos séculos, tais noções não existiram pelo simples fato de ambas as manifestações sexuais terem podido coexistir com pouco ou nenhum conflito.
No intuito de desconstruir as noções binárias de heterossexual/homossexual, pego emprestado o seguinte exemplo (uma pergunta postada no fórum on-line Yahoo Respostas) do artigo “Hétero-passivo é tendência!”, de Gilmaro Nogueira:
“Sou casado e tenho uma vida hétero prazerosa. Só que desde 5 ou 6 anos de idade dou minha b… e preciso disso. Não sei se é homossexualismo ou vício… Só sei que é uma necessidade. Minha mulher não sabe e nem quer saber desses meus desejos. Não sinto atração por homens, só por pênis, por isso nunca tive um namorado, nem fui ativo com homem… Acho que sou um bissexual diferente e não sei o que fazer”.
O que podemos dizer sobre o caso acima, de um homem que se reconhece como heterossexual, mas que sente a necessidade de ter relações sexuais com outros homens? O que podemos dizer sobre tantos outros casos de homens e mulheres que se identificam como heterossexuais e que buscam eventualmente relações sexuais com o mesmo sexo sem que isso prejudique suas performances heterossexuais? E xs homossexuais que de vez em quando têm experiências heterossexuais? O que podemos dizer sobre ex-gays, ex-héteros, ex-héteros que voltaram a ser héteros etc.? Na verdade, como Gilmaro Nogueira sugere, em vez de simplesmente avaliarmos tais comportamentos pensando o que achamos deles, é muito mais produtivo e qualitativo perguntarmos: o que esses comportamentos nos dizem?
Primeiro tem que ser esclarecido que tais comportamentos não foram inaugurados pela modernidade e tampouco parecem se encerrar nela. As experiências sexuais supracitadas evidenciam um colapso das categorias identitárias totalizantes “heterossexual” e “homossexual”, que não dão mais conta da variedade de possibilidades sexuais que qualquer ser humano pode explorar durante a sua vida (especialmente tendo em vista que, teórica e biologicamente falando, tudo que nós precisamos para executá-las está pronto). Além disso, é fundamental que enxerguemos a sexualidade humana mais como um processo social, histórico, cultural e sobretudo dinâmico do que como uma condição natural e estática determinada pelo sexo biológico e controlada e policiada culturalmente pelo gênero atribuído àquele sexo.
Embora seja aparentemente irrefutável a necessidade das relações heterossexuais para a manutenção da espécie humana, isso de forma alguma deve significar que elas devam ser hegemônicas ou ter um caráter normativo em detrimento das outras relações sexuais possíveis. Da mesma maneira que a homossexualidade pode e tem se manifestado por séculos com pouco ou nenhum estímulo social, a heterossexualidade também não precisa ser garantida através da atribuição de privilégios e do uso do controle sexual social, que é muitas vezes literalmente policialesco.
O que quero dizer é que pouco importa provar se existe um cromossomo ou diferenciações cerebrais que determinem a homossexualidade ou a heterossexualidade, pois elas se dão no âmbito das relações sociais humanas, que contam com inúmeras variáveis, e se manifestam independentemente da vontade das elites políticas, econômicas e religiosas. O cerne do grave problema do controle da sexualidade (que já fez com que inúmeras pessoas matassem e fossem mortas) não se encontra no cérebro humano, mas sim nas relações de poder que são produzidas com frágeis alicerces teóricos e motivações políticas nefastas.
A luta LGBT é uma luta de todxs
A luta LGBT não pode ser encarada como uma luta por mera tolerância à diversidade sexual. Isso é muito despretensioso e inocente, até porque a luta LGBT só é de fato transformadora enquanto ela operar como ataque libertário a um projeto de poder conservador para a nossa sociedade. Por essa razão o pastor Silas Malafaia não pode ser encarado como um mero pastor que está dando a sua opinião. Ele faz parte da base social de sustentação desse projeto de poder, que toma corpo e forma em instituições políticas, como a bancada do obscurantismo religioso, que prega a homofobia e que quer aprovar, por exemplo, a “bolsa estupro”; a bancada ruralista, que joga na lata do lixo o interesse coletivo em prol dos interesses particulares e irresponsáveis do agronegócio; a bancada das empreiteiras e dos bancos; a bancada da bala e tantas outras que representam o setor do atraso.
Temos que entender que a luta LGBT é uma luta de todxs, porque ela ataca uma das principais bases de sustentação social e política desse projeto de poder conservador. A luta LGBT é a luta de todxs aquelxs que sonham com uma sociedade libertária, socialmente justa e igual, na qual homens e mulheres não sejam exploradxs por outrxs homens e mulheres, na qual eles e elas possam definir os arranjos familiares que preferirem e viver suas sexualidades de forma livre e de fato natural.
Com exceção do artigo do Gilmaro Nogueira, não fiz nenhuma referência formal a outros artigos na composição deste texto. Acredito que nossas opiniões e ideias são fruto de uma intensa interação com o mundo, e por isso prefiro fazer uma curta sugestão de leituras que com certeza me ajudaram a desenvolver as ideias aqui expostas.
Borrillo, D. Homofobia: História e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
Butler, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Dee, H. The Red in the Rainbow: Sexuality, Socialism & LGBT Liberation. Londres: Bookmarks Publications, 2010.
Engels, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. Posfácio de E. B. Leacock. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
Lindberg Filho é paulista, formado em letras pela Universidade de São Paulo
e milita no setorial LGBT do PSOL de São Paulo.
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Ilustração: Tiago Kaphan.