Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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O gênero que permite

Uma conversa com Ana Luisa Santos e Guilherme Morais sobre a performance Trans, em cartaz em Belo Horizonte. Por Bernardo RB

Shiny and new, like a virgin

Madonna

 

Dizem que a origem da palavra teatro vem do grego que significa “o instrumento de ver”. O lugar de onde se vê. Teatro tanto pode ser um prédio aonde vamos, quanto o trabalho de quem nos convida a ver. Ao longo da história, a palavra não indica só espetáculos artísticos, mas também jogos públicos, assembleias ou um simples ajuntamento de espectadores. Espaço para assistir junto.

 

Trans, do coletivo This is noT, é uma obra que passeia por muitos dizeres, reunindo o público em torno de uma mistura de linguagens performáticas, com discursos híbridos sobre a recriação da identidade. O bailarino Guilherme Morais fala de uma entrega à variedade do mundo, em que se possa refletir e trabalhar o que não se sabe. “Eu quis, pensadamente, que fosse algo que tivesse o alcance da velocidade de acesso à informação que temos atualmente nesta era virtual. Daí pensamos no excesso em alta velocidade. O que nos ajudou a não fixar nenhum ponto específico, ou firmar um discurso específico, e sim atravessar todas as coisas, permitir, permitir…”

 

Cocriada por Ana Luisa Santos, a performance investiga o universo transformador de corpos que saem da anestesia, em constante refazer no corpo a corpo com o mundo. “Você que nem sabe o que deseja: calma, Beth, calma! Assim você me machuuuca”, diz um trecho do rápido texto.

 

Transvisão

 

Por duas vezes estive com o Trans. Foi em 25 de janeiro e em 15 de agosto, neste ano de 2013. Nas duas vezes não houve muita distância entre os performers e os espectadores. Não havia, também, a ideia de que o público fosse um amontoado adormecido a ser acordado, chocado. Não havia uma verdade calada que precisasse jorrar.

 

Há no Trans a abertura para um fato tanto cotidiano quanto performático: ser mulher, ser homem ou simplesmente ser tem sido aprender a se mostrar “assim”, “desse jeito”. É treinar uma imagem. É construir a partir de um instrumento com o qual o outro vê: aprendo a interpretar a linguagem que herdei no meu nascimento, que é criativa por natureza. Não há gênero fora do dizer. Nós não somos tão xoxota versus pinto assim, a coisa é complexa como o fato de não haver um rosto igual ao outro, ou um ânus igual ao outro.

 

Entretanto, somos divididxs dentro do nosso próprio ser, nosso próprio corpo. Dizemos: tem uma parte de mim que soa assim, outra parte que diz assado, outra que quer, outra que não quer. E por aí vai infinitamente dividido um eu-corpo em muitos sabores, que é um. É normal referir-se a dois braços no singular, ou dizer “a perna”, quando falamos das duas, que têm cada qual a sua história. O cérebro mesmo não tem dois lados iguais. Os seus hemisférios pulsam cada qual com a sua especialidade.

 

Como indivíduo, posso me ajuntar com algo que não sou eu, ou seja, com outro ou outros. Formamos uma unidade ou conjunto. Algumas vezes, aliás, eu posso julgar-me uno com uma roupa. Ou com um nome. Há quem se dissolva em uma casa.

 

Outras vezes, posso nem sequer me reconhecer no próprio eu-corpo, na minha casa mais primária. E, de repente, podemos ver que aquilo que julgávamos parte de nós mesmos não tinha nada a ver. Ou tinha, mas não tem mais sentido algum. Con-fundimos, costuramos e de repente temos que soltar, morrer como na reprodução de um organismo unicelular. Subitamente o que é um vira dois, renasce.

 

E a mágica de existir não para. Podemos sempre ter mais uma vez a experiência de fundir, ou de ajuntar e partilhar o espaço comum – que é muitos. E outra vez separamos tudo de novo. Estar vivx é trans, transitoriedade, ainda que isso não nos tire a liberdade de poder escolher e tomar posições. Aqui segue uma conversa por e-mail com criadorxs que dançam essas questões, hoje.

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Figurino e ser e estar

 

Vocês usam maquiagem e roupas que os deixam andróginos e parecidos. São duas transnoivas que foram do masculino para o feminino. Muitas das falas vibram juntas, mas rápido vocês podem começar a discutir. Ao longo das danças, vamos notando que a região da genitália está destacada com calcinha/cueca vermelha sob o vestido branco. A Ana Luisa tem uma virilha, o Guilherme tem outra. Nesse jogo, vocês poderiam identificar algum centro, ou ponto de respiração e de transição?

 

Ana Luisa Santos. A imagem do duplo é um ponto de interesse no Trans. Esse espelhamento dos gêneros, essa confusão entre os corpos (no sentido de identidades individuais) é uma busca consciente no trabalho. Não é na mimese que está o objetivo, mas no trânsito de uma suposta identificação. Não somos idênticos. Acredito que o jogo nos aproxima em cena. Ao mesmo tempo, temos singularidades que são muito importantes nas ações. Borrar esses limites entre os gêneros não significa ir de um polo para outro da estrutura binária do gênero. O gênero é uma experiência performática muito particular de cada pessoa, que segue mais ou menos um roteiro do que é ser homem e do que é ser mulher ou do que é ser outra coisa. No Trans, acredito que há uma busca de alterar a frequência, o ritmo, o timbre desse roteiro, propondo outras leituras e efeitos.

 

Guilherme Morais. Acho que brincamos muito com isso todo o tempo, na primeira parte brincamos com o arquétipo social feminino, com os vestidos e a preparação ritualística da noiva, passando pela trans-formação da mulher monga, onde a mulher desaparece. Aparece depois uma menina que brinca com os padrões sociais, na cena “menina não pode sentar assim”, que é exatamente onde não colocamos paralelismo entre o meu corpo e o da Ana. É somente ela, na única cena lenta, com duração dilatada. Todos com calma veem seu corpo em exposição e transformação, dá para ver todo o seu processo de crescimento de pelos pelo corpo, vai num crescente até que entra a minha transformação, que é completamente social. Uso várias roupas e junto seus significados e voltamos ao paralelismo de nossos corpos, agora com as questões sociais clichês masculinas, a disputa, o futebol, o saco roxo. É só no final que realmente há o encontro entre nós dois, na “criação do mundo”, no paraíso de Adão e Eva, mas mesmo assim fica bem confuso. Invertemos toda a lógica, do paraíso, da criação da Eva. A origem para mim é um caos, graças a deus (risos).

 

Pós-gênero + LGBT

 

Vocês começam a performance dizendo algo como “não se preocupe, você que ainda não se decidiu”. Esta fala está permeada por outras que fazem ver nossas identidades como fluxos, mutações. Por um lado, vemos a tendência atual de um “pós-gênero”, enquanto há, por outro lado, uma agenda política de reivindicações específicas muito ligadas a uma percepção definitiva das identidades. Como é isso no coração de vocês? Como é estar no mundo com uma percepção mais alargada de trans, estando ao lado das lutas LGBT?

 

ALS. Essa é uma questão que eu percebi na pesquisa do Trans, quando fui a uma palestra em que estavam representantes dos movimentos GLBT em várias instâncias do poder público de Belo Horizonte e Minas Gerais para discutir gênero e espaços culturais. Entendi que a estratégia de articulação da maior parte dos movimentos se dá pela afirmação da identidade, pois é essa identidade que precisa como que emergir no imaginário da sociedade de outra maneira. Pelo que percebi, há um posicionamento em torno do conceito de minorias, no bojo dos direitos humanos e direitos sexuais. Acredito que os movimentos e as pessoas se articulem de modo a gerar mais força para seu posicionamento político. Sinto que meu engajamento “trans” não parte de um caminho de exclusão, mas de inclusão de causas: são lutas que são das mulheres, dos gays, dos artistas, das pessoas que não querem consumir tanto… Essa foi uma das perguntas que eu fiz neste dia do evento: o que os movimentos propõem de articulação com o público em geral, não só para seu público-alvo… e o que os movimentos propõem em termos de encontros em torno de ações artísticas e culturais… Atividades e atitudes que desenvolvam mudanças no campo da sensibilidade, convivência, relações, outras experiências…

 

GM. O alargamento se faz necessário por ser uma “batalha” não linear, social, política, cultural mais que sexual, que amplia um sistema de poder binário homem-mulher, preto-branco, bem-mal, exclusão-inclusão. Esse sistema de poder continua sendo uma insistência empoeirada, mas que ainda se sustenta por todos nós, que preferimos permitir que ela siga sendo o modo simples e fácil de nos organizar e manter tudo sob controle.

 

É necessário, sim, uma complexificação do ser e do sistema, não só para diluir o mundo binário, mas para criar novos espaços, diálogos, buracos, onde, sim, é possível ser e criar uma outra identidade construída e reinventada pelo desejo de cada um e não pelo sistema.

 

Os movimentos políticos de direitos humanos seguem ainda dividindo e catalogando, para conseguir fazer com que se tenha uma discussão ou um entendimento, para lograr uma aceitação de determinados grupos, ou atender a demandas específicas. Entretanto, essa atitude continua legitimando esse sistema de poder, quando você divide em “uma ou outra coisa”, você só pode ser “incluído ou excluído”, reafirmando os oprimidos e os opressores.

 

Mas ao mesmo tempo o fracasso já existe, a prova disso é a falta de força do modelo ocidental cristão patriarcal machista, ele segue operante, mas já temos espaços para outras possibilidades, como: marcha das vadias, outras religiões, plurimanifestos, onde várias pessoas podem reivindicar diferentes coisas e estão juntas.

 

Creio que estamos sendo cúmplices da construção de possíveis futuros, é um caminho lento, mas ele a pequenos passos está começando a se permitir ser. Temos que começar é a romper com a linguagem, com o pensamento binário, sentimentos enraizados, e ouvir nosso desejo, a construção de mim mesmo mantendo a coerência do pensar, sentir e agir. Não confundir o verbo com o agir, é importante gerir, discutir, mas também é importante colocar o corpo, sair às ruas, mesmo que muitas vezes não se compreenda ainda do que se trata. Não precisa esperar ficar pronto, ou entender, sair do lugar já é um bom começo, depois atravessando as coisas com o corpo e vivendo você vai conhecendo as possibilidades e entendendo… Permita ir… permita.

 

Ânus

 

Em dado momento do Trans, as bundas são comparadas didaticamente (pela voz da Mariana Blanco, participação especial do coletivo Primeira Campainha). Ela diz que o que todo mundo tem, bunda, não faz tanta diferença. A singularidade está no cu. Em relação a esse ponto exterior que tem muito de interior, que afeto se faz em vocês?

 

ALS. Essa coisa do cu é uma relação com as fronteiras do corpo e seus interditos. O que entra, o que sai do corpo é muito vigiado. As passagens, as fronteiras, as alfândegas corporais. O cu é do mundo.

 

GM. Apresentam-se dois corpos de costas, não se vê a genitália. A diferença já não pode mais ser a genitália. De costas, ambos os corpos têm traços iguais, trazendo a confusão sobre quem é quem. Mesmo assim, Mariana Blanco enumera várias diferenças existentes nas bundas, umas com celulites, umas peludas, outras durinhas…, mesmo sendo todos aparentemente diferentes, ou fisicamente diferentes cada um com sua especificidade, a diferença real tá é no cu, que cada um tem o seu, e ninguém discute, ou seja, é mais particular, tem a ver com gosto, com o desejo, a diferença maior é interna. Ao mesmo tempo, não é uma coisa onírica ou energética de se alcançar o verdadeiro eu, é mais embaixo, o negócio é no cu mesmo…

 

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Argentina

 

O nascimento do Trans está ligado a uma troca com a luta portenha pela diversidade, principalmente com o pensamento desenvolvido na ONG Futuro Transgenérico e na revista travesti El Teje. Como foi essa convivência? Esta troca ainda acontece?

 

ALS. Sim, acontece com a artista Susy Shock, que veio para a estreia do Trans em agosto de 2012 e no Verão Arte Contemporânea, em janeiro de 2013. Mas começou antes, quando Guilherme estava em Buenos Aires. Eu fui visitá-lo e ele me apresentou o que estava pesquisando lá – porque coincidia com o que eu estava trabalhando também, sobre um atravessamento permanente ligado ao gênero não como um esquema, mas perpassando muitas expressões diferentes, híbridas, numa sensação constante de trânsito, desorientação e desejo difuso. Conhecer a Casa Brandon e as Noches Bizarras, em Buenos Aires, para mim, foi muito potente, porque percebi também uma força politicamente engajada de atuação artística e de afeto muito interessante.

 

GM. Sim, mais que companheiros de luta, somos muito amigxs, e nos falamos sempre, estamos sempre nos atualizando. Eles sabem de tudo o que está acontecendo aqui no Brasil também, do absurdo das igrejas no poder do governo laico, e das criminosas tentativas de se criar um estado opressor contra a minoria. Ao mesmo tempo, a Argentina segue para uma discussão de identidade de gênero pioneira na América Latina, então temos muito o que aprender com nossos hermanos. Susy Shock, uma artista trans argentina, já apresentou inúmeras vezes conosco recitando suas poesias e até mesmo atravessando o trabalho. Ela está tentando levar a obra para Córdoba em um festival de arte travesti. A proposta é depois fazermos uma miniturnê pela capital e alrededores.

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Trans – espetáculo contemporâneo interdisciplinar
Direção: Guilherme Morais
Intérpretes criadorxs: Ana Luisa Santos e Guilherme Morais
Iluminação: Marina Arthuzzi
Participação especial: Mariana Blanco (Primeira Campainha)

Agenda 2013 em Belo Horizonte
Setembro: dias 5, 6 e 7, às 21h, e dia 8, às 19h, no Teatro Alterosa. Dia 13, às 19h30, no Centro Cultural Lindéia Regina.
Outubro: dia 19, às 17h, no Centro Cultural São Geraldo.
Novembro: dia 28, às 19h, no Centro Cultural Vila Fátima.
Dezembro: dia 15, às 16h, no Museu de Arte da Pampulha.

Censura: 18 anos.

Coletivo This is noT: http://notthisis.wix.com/thisisnot

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Fotos: Julia D’almeida (This is noT)

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