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De quem é esta efígie?
Conhecendo a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional. Por Marcos Visnadi
Então, retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o surpreenderiam nalguma palavra; e enviaram-lhe os seus discípulos, com os herodianos, dizendo: “Mestre, bem sabemos que és verdadeiro, e ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas a aparência dos homens. Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não?”
Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: “Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo”. E eles lhe apresentaram um dinheiro. E ele diz-lhes: “De quem é esta efígie e esta inscrição?”. Dizem-lhe eles: “De César”. Então ele lhes disse: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram.
(Evangelho de Mateus, cap. 22, versículos 15-22)
Um dia antes de o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) ter sido designado presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, a seção Tendências e Debates, da Folha de S.Paulo, dedicou-se a discutir aquele momento. Essa seção costuma trazer dois artigos, em geral sobre um mesmo tema, em geral argumentando em direções opostas – um recurso tipicamente jornalístico, especialmente útil quando se quer sublinhar o caráter imparcial da imprensa e sua importância para a exposição dos diferentes pontos de vista que devem conversar e coexistir para o bem da democracia.
Mas não existe imprensa imparcial. No caso da edição de 6 de março de 2013 da Folha, isso fica evidente na escolha dos dois articulistas que estamparam a tendência do debate proposto pelo jornal: o próprio personagem em destaque, Feliciano, e aquele que figuraria na mídia, desde então, como seu antagonista direto, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ).
Não me interessa aqui discutir o teor dos artigos publicados, seja o de Feliciano ou o de Wyllys. Acho mais interessante ver como a escolha desses dois articulistas simboliza uma linha editorial mais ampla, que perpassa vários meios de comunicação brasileiros, e que anuncia uma oposição que tem adquirido tons de guerra não só na imprensa, mas também na sociedade como um todo (sempre mais complexa que qualquer linha editorial). Falo, obviamente, da disputa por poder entre “gays” e “evangélicos”.
Peço especial atenção às aspas nessas palavras. É assim que os jornalões costumam se referir a dois grupos sociais que, no limite, não existem. Proponho que a gente não contribua com essa simplificação.
O cristianismo é uma das religiões com maior número de adeptos no mundo, praticada nos cinco continentes. Dentro dela, o protestantismo (ou evangelismo) é apenas uma corrente, dentro da qual há inúmeras denominações, igrejas e, mais importante, pessoas. Da mesma forma, são inúmeras as pessoas no mundo que não vivem como “heterossexuais” ou “cissexuais”. Dentro desse grupo variado, que as estatísticas não conseguem agarrar, é que está o que chamamos de “comunidade LGBT”, formada por gente que se define ou é definida como lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual. E há inúmeras formas de vivenciar cada uma dessas definições.
São, portanto, inúmeras as maneiras de viver o próprio corpo e o próprio sexo, assim como a própria espiritualidade. Este texto não vai tratar de nenhuma dessas coisas. Vamos olhar para a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) não pelo fato de ela ser “evangélica”, mas por ser uma frente parlamentar. Quer dizer, não vamos aqui moralizar um fato institucional. Ou, usando as palavras de Jesus Cristo no evangelho de Mateus, vamos deixar a Deus o que é de Deus. A FPE é assunto de César.
Um site oficial, que está fora do ar
As frentes parlamentares são formadas por pelo menos um terço dos representantes da Câmara e do Senado que, independentemente de seus partidos, se unem para “promover o aprimoramento da legislação federal sobre determinado setor da sociedade”. Essa é a definição da própria Câmara dos Deputados, que em 2005 normatizou o funcionamento das frentes, possibilitando que elas usem o espaço físico do Congresso para suas reuniões e obrigando o registro de suas atividades por todos os órgãos de comunicação da Casa.
Há dezenas de frentes parlamentares, criadas em torno dos mais diversos assuntos. Existem aquelas cujos nomes são mais ou menos autoexplicativos, como a do Combate às Doenças Raras e a em Defesa da Criação do Estado do Maranhão do Sul. Outras, por sua vez, parecem ser assunto de especialistas, como a pela Autossuficiência do Potássio ou a do Marketing Multinível.
No geral, no entanto, elas têm em comum o fato de suas informações não serem muito fáceis de encontrar no site do Congresso. O que fazem? Do que se alimentam? Como se reproduzem? Seria fácil se cada frente tivesse uma página que registrasse suas atividades e outras informações relevantes, mas não é o caso. As informações se escondem nos meandros virtuais do Poder Legislativo, então temos que fuçar um pouco para descobri-las – ou recorrer a outros sites que não o do governo.
É assim que chegamos a alguns detalhes sobre a FPE. Ela tem um site oficial, que está fora do ar, e uma página no Facebook, inaugurada em 2011 e com uma única e última atualização em fevereiro de 2014. Trata-se de um álbum com 120 fotos em que algumas dezenas de pessoas usam o que parecem ser as dependências do Congresso para um culto religioso. As fotos não possuem legendas, mas, aqui e ali, podemos reconhecer rostos mais conhecidos, como os do deputado João Campos (PSDB-GO) e da deputada Benedita da Silva (PT-RJ).
Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, as eleições de 2010 fizeram com que a FPE tivesse 73 parlamentares (70 deputadas e deputados e 3 senadores), dobrando seu tamanho em comparação com as eleições de 2006, quando ela contou com 36 parlamentares. Para se ter uma ideia do peso político desse grupo, costuma-se dizer que, se a FPE fosse um partido político, ela teria formado, então, a terceira maior bancada da Câmara dos Deputados, atrás apenas do PT (com 87 deputadas e deputados que tomaram posse) e do PMDB (com 78).
Foi por isso que o então deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) pôde, em 2011, chantagear a presidência da República, ameaçando não só instaurar uma CPI contra o programa Escola sem Homofobia, do Ministério da Educação, mas paralisar, por meio de boicote da FPE, todas as atividades do Congresso Nacional se o programa não fosse suspenso. Isso explica também outros casos constrangedores para o Executivo federal nos últimos quatro anos, como o pedido de perdão do ministro Gilberto Carvalho à FPE, em 2012, e o beija-mão do ministro Alexandre Padilha a Feliciano em 2013, quando da suspensão de uma campanha para prostitutas pela prevenção de DSTs.
Essa tensão entre representantes da presidência e parlamentares da FPE aconteceu apesar de a maior parcela da frente ser de partidos que formaram a coligação que elegeu Dilma Rousseff, em 2010. Ao todo, a FPE inaugurou a última legislatura com 50 parlamentares do PSC, PR, PMDB, PRB, PDT, PT, PSB, PTC e PP. Nas eleições deste ano, o quadro ficou diferente, pero no mucho. Neste começo de outubro, a gente ainda não sabe se o Brasil vai eleger Dilma ou Aécio Neves como x próximx presidentx, mas já podemos temer um aumento dessa frente, com o mesmo tipo de diversidade partidária que a de 2010.
Para entender esse avanço do conservadorismo político amparado pelo rótulo evangélico, vai ser útil ter noções de como se deu a entrada desse grupo religioso na política brasileira.
Protestantes e o processo revolucionário brasileiro
A participação de evangélicos na política brasileira começou tão timidamente quanto a própria presença desse grupo religioso no país com o maior número de católicos do mundo. Na primeira metade do século 20, apesar de um deputado eleito aqui e um prefeito eleito acolá, o principal objetivo da organização política de evangélicos não eram as instituições do Estado.
Em 1934, foi fundada a Confederação Evangélica do Brasil (CEB), entidade que tinha entre seus objetivos forjar uma identidade nacional para essa minoria religiosa, congregando as várias denominações protestantes que já existiam naquela época. Ao longo das próximas décadas, a CEB se envolveu cada vez mais na busca por uma teologia que desse conta da realidade brasileira. Em 1962, o Setor de Responsabilidade Social da CEB organizou, no Recife, uma conferência intitulada “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”, na qual se discutiram a pertinência e o papel da Igreja evangélica no alinhamento às profundas reformas sociais que se anunciavam naqueles anos e às organizações populares que lutavam por elas.
É difícil, hoje, em tempos em que Silas Malafaia é chamado ao Congresso como autoridade em psicologia, conceber que um dia as lideranças evangélicas do Brasil tenham se unido para ouvir pensadores como Gilberto Freyre e Celso Furtado e debater o apoio às Ligas Camponesas e às Reformas de Base do presidente João Goulart. O comprometimento social da CEB lhe custou caro quando veio o golpe militar, e a entidade foi uma das primeiras vítimas da ditadura, sendo dissolvida pela repressão ainda em 1964.
Segundo sugere reportagem da revista IstoÉ, o golpe funcionou como um divisor da própria comunidade evangélica brasileira e de sua história. Pastores e bispos alinhados ao capitalismo estadunidense passaram a delatar para os militares a atuação de jovens seminaristas, militantes do viés social da Igreja, que muitas vezes foram presos e torturados. A histeria anticomunista e a repressão da ditadura podem ter feito com que grande parte da comunidade evangélica tendesse à direita conservadora.
108 milhões de cruzados
Mas foi apenas em 1986 que algumas comunidades evangélicas começaram a se preocupar em ter uma participação mais ativa na política nacional. Na época, surgiram boatos entre grupos evangélicos de que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) estaria planejando instituir o catolicismo como a religião oficial do país. Reportagem da revista Fórum afirma que, em Recife, “houve a distribuição de panfletos nos quais se insinuava que a futura Constituição iria proibir reuniões religiosas em logradouros públicos. As lideranças da Assembleia de Deus também faziam questão de lembrar que a nova Constituição poderia estabelecer pontos como a legalização do aborto, a liberação das drogas e o casamento de homossexuais” (algo parecido com o panfleto distribuído este ano, no Rio de Janeiro, conclamando fiéis a votarem contra “os planos do anticristo”). Com esses boatos e dispositivos de medo, 32 lideranças evangélicas foram eleitas para compor a Assembleia Constituinte, responsável por discutir e redigir o texto que formaria a Constituição pós-ditadura.
A Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso foi, obviamente, uma trincheira dos deputados constituintes evangélicos, já então preocupados com os valores da “família”. Mas a principal jogada política deles, como de costume, não tinha a ver com o pretexto moral de sua presença na Constituinte.
Esses deputados deram seu pulo também na Subcomissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação, e foram ainda mais eficientes em seus objetivos quando, em troca de apoio à emenda que concedia ao presidente José Sarney um ano a mais de mandato, receberam favores políticos, concessões de rádio e de televisão e, como lembrou o sociólogo presbiteriano Waldo Cesar, 108 milhões de cruzados, que foram “doados a fundo perdido” por Sarney para a CEB – desativada havia mais de 20 anos.
Os escândalos de corrupção da bancada evangélica não parariam por aí. A eleição de Fernando Collor de Melo não contou com o apoio apenas da Rede Globo, mas também desses políticos evangélicos, que formaram boa parte da base de sua candidatura e retardaram o quanto puderam seu processo de impeachment (em 2000, o Partido da Reconstrução Nacional, pelo qual Collor foi eleito presidente, mudou seu nome para Partido Trabalhista Cristão). A bancada evangélica também esteve envolvida no caso dos Anões do Orçamento, exposto logo após a destituição de Collor.
O ovo podre da serpente
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, gostaria também de comunicar que estamos coordenando a instalação da Frente Parlamentar Evangélica, que será composta de 57 Deputados e 3 Senadores evangélicos. Todos estamos imbuídos do mesmo propósito: além de trabalhar pelas causas evangélicas, acompanhar e fiscalizar os programas e as políticas públicas do Governo. Queremos, dentro do possível, influenciar positivamente na promoção de políticas sociais e econômicas mais abrangentes.
Nas Comissões Temáticas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, vamos propor legislação que preserve cada vez mais a moral e os bons costumes. Nosso objetivo é defender a família e o cidadão brasileiro.
O discurso acima, extraído do Diário da Câmara dos Deputados, é como o deputado Adelor Vieira anunciou a criação da Frente Parlamentar Evangélica, em 2003. Primeiro líder oficial da frente, Vieira foi denunciado, junto com outros colegas da FPE, na CPI dos Sanguessugas, em 2006, seguindo o caminho que levaria a bancada evangélica a ser classificada, em 2012, como a mais ausente, inexpressiva e processada do Congresso Nacional.
Assim como em 1986, “a moral e os bons costumes” que esses políticos dizem defender hoje são como a casca fina de um ovo podre. Seus perdigotos lançados contra a “ditadura gay” e os “planos do anticristo” servem, propositalmente ou não, para encobrir a corrupção, o aparelhamento da coisa pública e outras práticas ilícitas que passam desapercebidas nas escolhas editoriais de cada dia, enganadas pela nuvem de fumaça que o enxofre do ódio produz tão bem.
No ano em que elegemos o Congresso Nacional mais conservador do período pós-1964, talvez esteja mais do que na hora de fazer a justa separação entre os assuntos de César e os de Deus. E ainda há tempo de as comunidades evangélica e LGBT unirem-se a outras parcelas da população para desautorizar que, em nome do bem comum, espiritual ou terreno, violências sejam cometidas e privilégios mantidos.
Ilustração: Aline Sodré
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