Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

entrevista

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Por uma vida melhor

Conversamos com o ativista Bruno Bimbi sobre movimento LGBT, Estado laico e sua participação nas campanhas pelo casamento igualitário na Argentina e no Brasil. Por Alciana Paulino e Marcos Visnadi

Parece que foi do dia para a noite. Ou da noite para o dia. Um arco-íris brotou nas veias abertas da América Latina quando, em 2010, a Argentina se tornou o primeiro país do continente (e o décimo do mundo) a aprovar o casamento gay. Ou, melhor dizendo, o casamento igualitário, pois não se tratava só de conceder a gays e lésbicas o direito de se casarem. O que estava em jogo, nuestros hermanos nos mostraram, era que todas as pessoas tivessem os mesmos direitos, com os mesmos nomes. A Argentina foi o primeiro país, entre os nossos, a pôr fim ao apartheid homofóbico, que separa juridicamente pessoas hétero e homossexuais, fazendo destas cidadãs de segunda classe.

 

Iniciada em 2006, pode-se dizer que a campanha pelo casamento igualitário foi rápida. E não foi uma vitória isolada. Em 2012, a Argentina também aprovou aquela que algumas pessoas consideram ser a mais avançada lei de identidade de gênero no mundo, que possibilita que pessoas travestis e trans, por exemplo, mudem seus documentos sem ter de passar pela autoridade arbitrária de médicos e juízes. Isso em um país onde, até poucos anos antes, as pessoas poderiam ser presas se vestissem “roupa do sexo oposto” em público.

 

O movimento LGBT brasileiro olhava com admiração as conquistas do país vizinho, mas pouca gente sabia que um dos principais articuladores do movimento argentino estava entre nós, mais precisamente em alguma praia do Rio de Janeiro ou de Salvador, tendo discussões intermináveis com xs legisladorxs argentinxs pela internet. Trata-se do jornalista Bruno Bimbi, ex-assessor de imprensa da Federação Argentina LGBT e atualmente um dos coordenadores, junto com o ativista carioca João Junior, da campanha pelo casamento igualitário no Brasil, liderada pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).

 

Numa tarde quente e ensolarada, num Rio de Janeiro de mar azul, Bruno se encontrou com a Geni para contar como traça estratégias para a conquista de direitos LGBT. Autor do livro Casamento igualitário, lançado no último mês pela editora Garamond, ele nos deu um panorama dos cenários políticos argentino e brasileiro, falou das ameaças religiosas ao Estado laico, criticou o movimento social que se vende aos interesses governistas e se disse otimista com a campanha do casamento no Brasil: “A possibilidade de aprovar a lei no Congresso está cada dia mais próxima. Vai chegar um momento em que isso vai ser inevitável”. Para Bruno, esta é a política que vale: a que muda coisas concretas e faz com que milhares de pessoas possam ter uma vida melhor.

 

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Você veio pro Brasil fazer um doutorado?

 

Na verdade, vim para fazer o mestrado na PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]. Quando terminei e estava preparando a viagem pra voltar pra Argentina, conheci o Jean [Wyllys]. Ele me convidou para trabalhar no mandato dele, coordenando a campanha do casamento igualitário, que eu coordeno junto com outro ativista aqui do Rio, e então decidi ficar. Eu pensava em fazer o doutorado na Argentina, mas, depois da proposta do Jean, fiz a seleção para o doutorado na PUC.

 

Quando vocês se conheceram, ele já era deputado?

 

Já. Eu nem o conheci durante a campanha, não sabia que era candidato nem conhecia a história dele. E na verdade foi por acaso. Assim que teve a eleição [de 2010], eu soube por um amigo que ele tinha sido eleito deputado, que era um ativista gay, e resolvi mandar uma mensagem pra ele pelo Twitter. A minha intenção era deixar uma cópia do livro, que eu tinha acabado de publicar em espanhol, no gabinete dele. Pensando que talvez fosse interessante pra uma campanha aqui no Brasil, fazer alguma coisa parecida com o que a gente fez na Argentina.

 

Ele respondeu a mensagem, marcamos uma entrevista e fui lá. E foi meio engraçado, ele falou: “Pô, você deixa o livro e sai correndo? [Risos] Por que não faz o doutorado aqui?”. Aí ele insistiu que eu ficasse, estava começando a organizar o gabinete, e eu acabei ficando.

 

Agora você trabalha como assessor dele?

 

Sim, ligado ao mandato.

 

Você não é ligado ao PSOL?

 

Sim, também. Quando você entra, acaba se envolvendo em tudo, né? Eu antes não conhecia o Jean, mas conhecia a história do [deputado estadual Marcelo] Freixo, sempre tive muita admiração pelo trabalho dele. Mas quando fui falar com o Jean, não sabia muito da relação deles.

 

No doutorado, você estuda Wittgenstein e Chomsky, dois filósofos da linguagem. O que estudou no mestrado?

 

Foi na linguística aplicada: a disputa linguística envolvendo a palavra “casamento” ou “matrimônio”. Todos os países em que se dá a discussão do casamento igualitário têm essa mesma questão: se deve ter outro nome, como união civil. E em espanhol, tanto na Espanha quanto na Argentina, teve uma série de argumentações pseudolinguísticas. Falavam que “matrimônio” vem do latim mater, que significa mãe, então não pode ter um matrimônio entre dois homens, porque nenhum deles pode ser mãe, e isso violaria a etimologia da palavra. Uma estupidez, mas teve várias argumentações desse tipo. E a minha pesquisa de mestrado foi sobre essa questão na Espanha, em Portugal e na Argentina. Já no doutorado, pensei em algo mais teórico.

 

Quando você começou o mestrado, o matrimônio igualitário já tinha sido aprovado na Argentina?

 

Não, estava na fase final da disputa. Eu estava morando aqui. Viajava pra lá, mas principalmente fazia muita coisa daqui. Tem esse avanço louco das comunicações, que às vezes você nem se dá conta de onde está. Por exemplo, quando teve as discussões nas comissões da Câmara dos Deputados, eu, do meu apartamento no bairro da Abolição, na zona norte do Rio falei por Skype com os gabinetes de 30 ou 40 deputados, e discuti pessoalmente por meia hora, uma hora, com 10, 15 deputados. E eles não sabiam que eu não estava na Argentina!

 

Até que uma deputada falou: “Passa amanhã no gabinete, que a gente conversa pessoalmente”. E nesse dia eu não estava nem no Rio, estava de férias em Salvador. Mas não podia desligar [da campanha]. Então, quando falei que estava em Salvador, ela disse: “Mas você é um filho da puta! [Risos] Está me ligando pra que eu vote a favor dessa lei desde um praia, tomando sol, cervejinha gelada, e eu aqui no gabinete morrendo de calor!”.

 

Era uma deputada que seria de um partido como o DEM aqui, um partido de direita. E acabou votando a favor! A gente acabou tendo uma relação quase de amizade. E ninguém acreditava que ela votaria a favor.

 

Isso era uma coisa que eu queria entender. Sei que seu livro é sobre isso, mas tem como você fazer um resumo de como foi a trajetória, desde a primeira proposta de lei até uma deputada de direita votar a favor?

 

É, parece estranho, né? Olha, em 2006, quando a gente cria a Federação Argentina LGBT, ela começa sendo uma federação de cinco organizações. Agora tem mais de 60 em todo o país.

 

É como se fosse a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)?

 

Claro. Só que não [risos]. Quando a gente começou a Federação, a direção do movimento LGBT na Argentina era de um grupo, a CHA [Comunidad Homosexual Argentina]. Digo, a direção de fato, porque é um grupo pequeno, com pouca representatividade, mas que tinha toda uma história. Digamos que a logomarca do movimento LGBT era deles, como se fosse a ABGLT aqui. E eles não queriam saber nada de casamento.

 

Quando a gente criou a Federação, foi com a intenção de ter uma agenda comum pro movimento. Então a proposta era a seguinte: todas as organizações que quisessem fazer parte da Federação tinham que concordar com uma agenda. Depois, cada uma poderia ter sua agenda própria, mas precisava ter uma agenda nacional, que todo mundo concordasse que era prioridade do movimento nos próximos cinco ou seis anos. E era: casamento igualitário; lei de identidade de gênero; a revogação de todas as leis repressivas que havia nos estados, como as que permitiam à polícia deter as travestis na rua e coisas assim; a mudança dos planos de educação básica e secundarista, pra que tivesse educação sexual com perspectiva de gênero; e uma alteração na lei contra a discriminação, que seria uma versão argentina do PLC 122 [projeto de lei brasileiro que criminaliza a homofobia], só que com a diferença de que lá a gente não colocou a ênfase na questão punitiva, mas em outras ferramentas legais para combater a discriminação, ações não tanto do direito penal.

 

Quais são essas ações?

 

Ações do direito civil, trabalhista. Por exemplo, você está trabalhando, seu chefe descobre que você é lésbica e te demite. Terá muita dificuldade pra provar que foi por isso, então o que colocamos na lei é a inclusão de uma questão do direito internacional de direitos humanos, que se chama doutrina da categoria suspeita. É o seguinte: se você pertence a um grupo social historicamente estigmatizado, que sofreu perseguição, você pertence a uma categoria suspeita. Então, você teria que provar que a sua relação no trabalho era ótima e que, logo antes da demissão, seu patrão descobriu que você era lésbica. Mas você não precisa provar que esse foi o motivo da demissão, ele é quem precisa provar que foi por outra razão. Esse é um projeto que já passou pela Câmara argentina, falta passar pelo Senado.

 

Desses todos que você citou, esse é o único que falta?

 

É. O casamento já está, a lei de identidade de gênero também. Das revogações das leis repressivas, a gente já conseguiu o mais pesado. Ainda tem leis que continuam sendo usadas pela polícia de maneira arbitrária, mas a gente já conseguiu tirar o mais grave, por exemplo as leis que diziam: “Será reprimido com pena de prisão de 1 a 30 dias aquele que vestir roupa do sexo oposto”. Pronto, uma travesti infringia a lei só por sair na rua.

 

Essa era uma lei argentina da época da ditadura?

 

Não, eram leis estaduais, de quase todas as províncias, e que eram uma herança da Colônia. A ditadura só piorou um pouco mais, mas já era uma porcaria. Segundo [o jurista argentino Eugenio Raúl] Zaffaroni, são heranças da legislação napoleônica. Tinha leis como a que para uma mulher trabalhar em qualquer tipo de bar ou restaurante, ela tinha que ter uma certidão de bom caráter assinada pelo chefe da polícia! Certidão de bom caráter! Eu nunca teria isso [risos].

 

Essa era uma lei que existia até quatro, cinco anos atrás. Na maioria das vezes, não era aplicada. Mas lá é como no Brasil: as polícias estaduais são uma máfia. Então a lei não era aplicada, mas a polícia a usava para extorquir, pedir dinheiro. Era uma ferramenta que a polícia usava para fazer a merda que ela faz. E como as penas eram muito leves, de 15 a 30 dias, a gente nunca conseguia chegar ao que seria o STF [Superior Tribunal Federal] com uma ação. No caminho, a pena sempre prescrevia. Se a gente conseguisse levar essas leis até o STF, ele revogaria, mas não tinha como! Então a gente tinha que conseguir que as assembleias legislativas dos estados revogassem, e a pressão para que isso não acontecesse era da polícia e da Igreja. A Igreja pela questão moral, e a polícia pelo dinheiro que ela arrecadava.

 

Então a gente fez um trabalho com o governo [do então presidente, Néstor] Kirchner, com o Aníbal Fernández, que na época era ministro do Interior, depois foi chefe da Casa Civil com a Cristina [Kirchner, presidenta desde 2007], que fez uma pressão direta com cada governador para que tirassem essas leis.

 

Vocês já tinham esse contato com o governo federal?

 

Não, a gente foi construindo. Começou com a campanha do casamento e a gente foi ampliando para outros temas.

 

Uma das consequências mais importantes do casamento igualitário foi a mudança cultural e política. A importância não era só pelos direitos materiais. Claro que isso é importante, conheço pessoalmente casais que moraram juntos 30, 40 anos, e quando o parceiro morreu o outro ficou na rua, porque a família veio com escrivão, advogado, e a lei permitia isso. Tem o caso de um cara que nem o gato deixaram levar! Um bichinho de estimação. Então tudo isso é importante.

 

Mas a gente sempre pensou que, muito mais importante do que isso, era o efeito que não só a aprovação da lei produziria, como também a sua discussão. Na última fase da aprovação da lei, durante uns seis meses, o tema foi capa de jornal todo dia! Você ligava a televisão, o rádio, estavam falando disso. Então as pessoas falavam disso na fila do restaurante, do ônibus, no mercado, na escola, todo mundo estava falando. E muita gente, que nunca tinha parado pra pensar nisso, precisava decidir o que pensava. Chegou um momento em que todo mundo precisava ser a favor ou contra, pra manter as conversas mais triviais do dia a dia.

 

Uma das consequências mais importantes
do casamento igualitário foi a mudança cultural e política.
A importância não era só pelos direitos materiais”

 

Isso fez com que muita gente refletisse, pensasse, ouvisse. E deu muita visibilidade aos casais. Eu nunca vi tanta gente saindo do armário em tão pouco tempo. E indo pra televisão, pro rádio, se mostrando. Eram pessoas que queriam casar, e que entendiam que parte dessa briga era se mostrar. Aí, quando começava a discussão sobre adoção, todos os casais que tinham filhos abriam a casa pros jornalistas, pra tirar os fantasmas, os preconceitos. Isso foi muito bom, mudou a cabeça de muita gente.

 

Então, dois anos depois, quando veio a lei de identidade de gênero, a discussão foi outra. Já era outro país. Essa lei foi aprovada com unanimidade no Senado. E é uma lei que diz que uma pessoa transexual ou travesti tem direito a ir a um cartório, preencher um formulário e receber uma nova carteira de identidade! Todos os registros são atualizados, e nenhum documento vai ter nenhuma menção ao nome legal anterior. E a pessoa faz isso sem ter que passar por juiz nem por médico! Para a lei, a identidade de gênero é a autopercepção do gênero. A continuidade jurídica se dá pelo número de registro, e não pelo nome.

 

Com relação a isso, queria que você comentasse uma coisa. A gente entrevistou a Marlene Wayar e ela criticou essa lei, dizendo que é heteronormativa. Você não acha um problema ter que escolher entre uma identidade masculina ou feminina?

 

Eu discuti isso com a Marlene várias vezes. Olha, a lei responde a uma demanda da população. A gente discutiu essa lei em assembleia com pessoas travestis e transexuais em todos os estados. Antes de apresentar a lei, a deputada autora do projeto foi no Roseiral de Palermo, onde ficam travestis que se prostituem, numa sexta-feira às duas da manhã, fizemos uma assembleia lá, a deputada sentou e discutiu com elas. A lei foi discutida ponto por ponto no país inteiro. E o que todas as travestis queriam era um documento que dissesse: eu sou mulher. Tem três ou quatro travestis que gostam dos estudos queer e que querem um documento sem gênero. Tá, tudo bem, convence pelo menos mais dez e apresenta um projeto. Mas a gente não vai mudar a discussão do país inteiro por causa de quatro pesquisadores.

 

Agora, se você me pergunta se eu sou contra, eu não sou! É assim: quando teve a discussão do casamento, a direita dizia que, se aprovasse o casamento homossexual, logo iam querer aprovar a poligamia. Quando algum jornalista me perguntava, eu dizia: não é a demanda da população! Não é isso que a população LGBT está demandando. Agora, se amanhã a população demandar, seja LGBT ou hétero, eu sou a favor! Qual o problema se você quiser casar com quatro? Agora, essa não é a minha reivindicação nem a do coletivo em que eu trabalho. Se você conhece quem reivindique isso, me apresenta! Essa é uma discussão abstrata, que pode acontecer num círculo de filosofia, mas na vida real não tem pessoas reais que estejam demandando isso. Se amanhã tiver, eu apoio! Se a gente entrasse nessa discussão que a Marlene queria, a lei não saía nunca.

 

E como vocês chegaram nesses cinco pontos em comum da Federação?

 

No início foi um acordo das cinco organizações. Depois, as novas que entraram foram aderindo a isso.

 

E a ordem de prioridade era essa?

 

Não, não tinha ordem de prioridade. O que teve foi uma ordem estratégica cronológica. A gente decidiu apresentar todos os projetos ao mesmo tempo, mas entrar primeiro na discussão do casamento. Isso foi muito discutido, e a gente só fez isso porque a Attta [Asociación Travestis Transexuales Transgéneros Argentinas] concordou. Porque se a gente tivesse colocado na pauta primeiro a lei da identidade, teria saído uma lei com [o conceito médico de] disforia de gênero, com [necessidade de] autorização do juiz, proibição para menores de idade… porque esses seriam os consensos possíveis naquele momento.

 

Pra fazer uma lei avançada como a gente queria, a gente precisava primeiro produzir um choque, uma mudança cultural. E tem uma questão de empatia. Quando você coloca a discussão do casamento na agenda pública, você está falando de duas pessoas que se amam, querem ter filhos… qualquer casal heterossexual pode se identificar. Quando pensa na questão abstrata, você pode até ter preconceito. Mas, quando vê na televisão aquele casal de lésbicas, que quer ter filhos, que se ama, aí aquele casal hétero com muito preconceito percebe que não tem tanta diferença. Há uma possibilidade de gerar empatia, era uma discussão mais fácil de ganhar. E era também uma discussão que ia ter muita presença midiática, um tema que a mídia adora.

 

Polêmica!”

 

“Polêmica!” Então tinha todas as condições para usar esse tema para produzir uma mudança na percepção social de todas as identidades sexuais diferentes, não só da homossexualidade.

 

É mais ou menos isso que o Jean Wyllys está propondo agora, priorizando o casamento no lugar do PLC 122.

 

Exatamente. Você coloca uma pauta positiva. O PLC122 é uma pauta negativa, queira ou não queira. Fala de penalização, cadeia, prisão. Você coloca uma pauta positiva, que fala de amor, afeto, vínculo. E [na Argentina] isso permitiu que milhares de pessoas mudassem de opinião sobre a questão, e que os políticos perdessem o medo. Se você soma a quantidade de votos de todos os candidatos presidenciais de 2011 que se declararam a favor do casamento igualitário, essa soma dá mais de 84%. O candidato mais votado entre aqueles que foram contra teve 5% dos votos.

 

A Cristina, em 2011, ganhou com 54%. Claro que tem uma multiplicidade de fatores que levam a isso, mas tem uma coisa em que todos os analistas coincidiram na época. Quando você olha a curva da popularidade da Cristina, ela estava alta, começou a cair com o conflito com os fazendeiros [em 2008], caiu mais por uma série de questões e estancou em 2009, quando o Néstor Kirchner perdeu as eleições [legislativas]. O momento em que a curva começou a subir foi com a aprovação do casamento igualitário. Não significa que esse tenha sido o único motivo, mas é uma informação! E aí, quando a gente começou a discutir a lei de identidade de gênero, ninguém bancava a discussão contra.

 

Como você entende essa questão no Brasil? A gente tem um governo supostamente de esquerda…

 

Você acha que o governo da Dilma é de esquerda?

 

Se diz à esquerda, né?

 

Ah, se diz. Paulo Maluf se diz honesto [risos].

 

Mas o PT, aqui no Brasil, é um dos partidos que mais têm histórico de apoio à causa LGBT.

 

Até que chegaram ao poder.

 

É, e a Dilma tem sido muito omissa, e até homofóbica em determinados discursos. Como é que você compara isso com a situação da Argentina?

 

É muito diferente!

 

Digamos que não dá pra aplicar a mesma estratégia aqui?

 

Não é que não dê, mas a situação é diferente. O PT escolheu, quando chegou ao poder, fazer uma política de uma base ampla, pra ter maioria no Congresso e pra concorrer às eleições. Essa base inclui a Igreja Universal do Reino de Deus, parte da Assembleia de Deus, partidos de ultradireita como o PSC, do Marco Feliciano, parte da bancada ruralista, partidos como o PP, de Bolsonaro e Maluf, o PMDB… Pra não ter o tipo de crise que o Hugo Chávez e o Evo Morales tiveram, de resolver as coisas na rua, com plebiscitos, o PT decidiu fazer uma maioria parlamentar, com os partidos em torno do Lula, e agora da Dilma.

 

Eu acho que o Lula tinha mais cintura política pra administrar essa situação. A Dilma não tem nem critério nem cintura, ela é presa dessa coalizão. E é uma gerente. O Lula, com todos os defeitos, se tinha um conflito, ele discutia. Ele foi na Conferência Nacional LGBT [em 2008], sentou lá e discutiu com as pessoas. A Dilma não foi.

 

Quando teve a questão do kit Escola sem Homofobia, o mal falado “kit gay”, o Anthony Garotinho [PR-RJ], vice-líder da bancada evangélica, foi falar com o [ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência] Gilberto Carvalho e disse: se não tirarem o projeto Escola sem Homofobia, nós votaremos a CPI do [então ministro-chefe da Casa Civil, Antonio] Palocci. A Dilma negociou salvar o ministro tirando o projeto. E isso voltou a acontecer várias vezes. A bancada evangélica sabe que, quando precisa de alguma coisa, pressiona, e a Dilma diz uma dessas barbaridades, do tipo “não quero promover propaganda da homossexualidade”.

 

Do lado do movimento social, a situação também é diferente, né? Aqui no Brasil, você é assessor de um deputado. E a ABGLT não é exatamente a Federação Argentina.

 

Tem uma grande diferença entre a Federação Argentina e a ABGLT. A Federação foi construída como uma organização politicamente plural. A primeira presidenta da Federação, que foi presidenta durante toda a campanha do casamento igualitário, María Rachid, atualmente é deputada pela cidade de Buenos Aires, pela Frente para a Vitória, que é o partido da Cristina Kirchner. O atual presidente é militante do Partido Socialista, que é oposição à Cristina. Dentro da Federação, tem militantes e organizações de todos os partidos, até do PRO, que é como se fosse o DEM na Argentina, um partido de direita.

 

O nosso compromisso como militantes é com a agenda da Federação. Por exemplo, teve um momento em que a lei de casamento seria discutida nas comissões, e a base governista recuou porque a Cristina teria uma audiência com o papa, em Roma. Não tinha nada a ver com o assunto, mas a base governista não deu quórum para aprovar o casamento nas comissões, porque não queria as manchetes nos jornais no dia da visita ao papa. A María fez uma declaração pública terrível contra o governo, naquele dia. Eu, que simpatizava publicamente com o governo da Cristina, assinei uma matéria no jornal dizendo que os deputados da bancada governista eram cagões. E usei essa palavra, sem eufemismo. E nós éramos militantes do partido do governo.

 

Você acha possível esse cenário no Brasil?

 

Não. E aí eu tenho que tomar cuidado com como vou dizer… Quando você depende muito da grana do Estado, não tem independência.

 

Que é o caso do movimento aqui.

 

Você que disse [risos]. Se você, como ativista do movimento, fizer uma declaração pública e puder perder o emprego por isso, você não vai fazer. Quando você tem uma dependência econômica, de trabalho, que não permite que você tenha posições próprias, aí você tem que ter o papel lamentável de alguns dirigentes do movimento LGBT, justificando a suspensão do programa Escola sem Homofobia, não falando nada do casamento igualitário, da lei de identidade. Você tem lideranças do movimento nacional LGBT se reunindo com [os senadores] Marcelo Crivella [PRB-RJ] e Magno Malta [PR-ES] pra negociar o PLC 122. Que isso?! É que as organizações viraram cabides de emprego.

 

Quando você tem uma dependência econômica, de trabalho, que não permite
que tenha posições próprias, aí você tem que ter o papel lamentável
de alguns dirigentes do movimento LGBT, justificando a suspensão
do programa Escola sem Homofobia, não falando nada do casamento
igualitário, da lei de identidade de gênero.
É que as organizações viraram cabides de emprego”

 

Então quais são os parceiros da luta pelo casamento igualitário no Brasil?

 

São muitos. Aqui a luta foi organizada de maneira diferente, porque é iniciativa do mandato de um parlamentar, e não de uma organização da sociedade civil. O que a gente fez? A gente montou uma campanha – que em muitos aspectos reproduz a da Argentina –, apresentou o projeto de lei no Congresso Nacional, mas também vimos as possibilidades do Judiciário – o que também foi uma estratégia na Argentina. O casamento já é, de fato, legal no Brasil. A gente continua trabalhando por uma lei no Congresso para que essa situação seja irreversível, pra que uma nova maioria no STF não possa mudar isso futuramente.

 

Além disso, no Brasil, como na maior parte dos países em que a decisão veio pelo Judiciário, não teve discussão social. Então o casamento aqui é legal, e isso serve na prática pras pessoas, mas não serve pra todas as outras mudanças. Na Argentina, eu acho que o mais importante não foi a aprovação da lei, mas o debate da aprovação da lei. Hoje, ser homofóbico na Argentina é tão politicamente incorreto quanto ser racista.

 

Por isso a gente também fez uma campanha nacional, que conta com apoio do Chico Buarque, do Caetano Veloso, de atores e atrizes, como o Wagner Moura. Eu tinha escrito, na Argentina, um guia com as típicas perguntas que aparecem no mundo inteiro sobre o casamento. Lá, a gente entregou uma cópia a cada deputado e senador. Na campanha brasileira, a gente deu um passo a mais. Em vez de o guia ser só escrito, a gente filmou. Então tem os vídeos em que um artista faz uma pergunta, e uma pessoa especialista responde.

 

 

Essa estratégia de usar artistas conhecidos é pra pegar o grande público? Ou serve também pro Congresso, pro Judiciário?

 

É pra todos! Pra mostrar que não é só o Jean Wyllys que quer isso. Todos os músicos da MPB estão apoiando, os atores estão apoiando. Aí a gente vê que tem uma mobilização importante atrás disso. Por outro lado, ajuda a divulgar. A gente tem uma página no Facebook que já tem mais de 80 mil pessoas aderindo, tem um abaixo-assinado com mais de 100 mil assinaturas.

 

E o discurso religioso fundamentalista? Aqui no Brasil ele é o principal antagonista não só das causas LGBT…

 

De qualquer coisa que tenha a ver com liberdade.

 

Aqui a gente tem os evangélicos muito fortes no Congresso. Na Argentina, como é?

 

Na Argentina o problema era com a Igreja Católica. Na verdade, lá tem a Câmara e o Senado. Durante a discussão do casamento na Câmara, a principal figura da oposição era uma deputada evangélica. Mas os evangélicos lá não têm o peso que têm no Brasil, ou seja, ela é a única deputada evangélica do Congresso. E, como adversária, era a melhor possível, porque ninguém levava ela a sério. Que nem outro deputado, que também era contra, e era um palhaço, uma figura muito bizarra. Ele disse na televisão uma vez: “Eu sou contra porque tenho a mente fechada, e o cu também!”. Os caras da televisão convidavam só para ridicularizar.

 

Pior que o Feliciano.

 

Muito pior. Quer dizer, eu acho o Feliciano muito mais perigoso, mas pior no sentido do ridículo, ninguém levava a sério.

 

É que o Feliciano também tem esse lado ridicularizável, né?

 

Sim, mas o Feliciano tem poder, esse cara não tinha. Então, na Argentina, durante a discussão na Câmara dos Deputados, a oposição foi essa bizarrice. Porque a Igreja Católica não achava que fosse ser aprovado, não se preocupou. O [então cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario] Bergoglio, o papa Francisco [risos], nos subestimou. Quando a lei foi aprovada na Câmara e passou para o Senado, o Bergoglio teve um surto! Ele estava trabalhando havia muitos anos pra ser papa, era um projeto antigo dele, a gente sabia. E ele sentiu que, se a lei fosse aprovada, o sonho de ser papa acabava! Então ele surtou e começou a fazer declarações bizarras, escreveu uma carta falando que era uma guerra de Deus contra o Demônio, que a lei de casamento igualitário era um projeto de Satanás pra destruir a criação de Deus na terra, ele surtou completamente! E a Igreja começou uma campanha muito agressiva.

 

A senadora Liliana Negre de Alonso, que respondia à Igreja Católica e era a presidenta da comissão do projeto, começou a organizar audiências públicas em todos os estados, coisa que jamais tinha sido feita pra nenhuma outra lei. E o que ela fazia? Escolhia os estados em que a Igreja Católica era mais poderosa e fazia as audiências nesses lugares, em que a homofobia era tão forte que as pessoas LGBTs tinham medo de ir à audiência. E aí ela enchia essas audiências com militantes católicos, das universidades católicas, e mesmo das escolas, tinha crianças de dez anos com cartazes que diziam “Não ao casamento gay”.

 

Teve alguns estados em que os nossos militantes, que iam discutir a lei, tinham que sair protegidos pela polícia. Porque a Igreja organizava grupos de pessoas que jogavam pedras, cuspiam, gritavam “Viado! Sapatão!”. Era uma coisa violenta! Por isso eu fico tão indignado quando apresentam o papa Francisco como tão legalzinho. Ele é um filho da puta! Teve uma atitude muito violenta. E isso fez com que a gente ganhasse. Fez com que a sociedade argentina ficasse contra a Igreja. Quando a gente ia na televisão falar do casamento igualitário, a gente falava de amor, de viver junto, de direito. Quando eles iam falar, era com palavras agressivas, com insultos. As pessoas iam se posicionar do lado de quem falava de amor, ou de quem falava de ódio?

 

Nesse sentido, a bancada evangélica brasileira é muito mais inteligente, né?

 

Muito mais. Até porque, a bancada evangélica tem um projeto de poder. Eles constroem partidos, candidatos. E têm um projeto econômico, né, porque a bancada evangélica brasileira é a representação política de um grupo de empresas. A Igreja Universal não é uma igreja, é uma empresa. O Bergoglio é um líder religioso com um projeto político, mas ele não é um empresário, não faz isso pra ganhar dinheiro. O Edir Macedo, o Malafaia, o Feliciano são empresários. Vocês acham que eles têm algum problema moral ou religioso com relação à homossexualidade? Eles estão cagando pra isso. Usam isso como ferramenta de marketing pra ganhar uma base social preconceituosa com uma coisa que foi usada na história da humanidade um milhão de vezes, que é a construção de um inimigo. Salvando as enormes distâncias, é o que o Hitler fez com os judeus. O que está acontecendo agora na Rússia com o Vladimir Putin é que os inimigos são os homossexuais. Consolida-se um apoio político em torno do medo. E esse grupo de bandidos que se dizem pastores evangélicos, o que eles fazem é usar o discurso contra os gays pra construir um inimigo, e tem a ver com o projeto de dinheiro que eles têm. Por algum motivo, todos são milionários.

 

O Edir Macedo, o Malafaia, o Feliciano são empresários.
Vocês acham que eles têm algum problema moral ou religioso
com relação à homossexualidade? Eles estão cagando pra isso.
Usam isso como ferramenta de marketing pra ganhar
uma base social preconceituosa com uma coisa
que foi usada na história da humanidade um milhão de vezes,
que é a construção de um inimigo”

 

Nesse cenário brasileiro, coordenando essa campanha, qual a sua perspectiva de conquista efetiva de direitos?

 

A gente ganhou uma batalha muito importante, que foi a aprovação do casamento no CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Acho que a campanha cresceu muito, e que a possibilidade de aprovar a lei no Congresso está cada dia mais próxima. Vai chegar um momento em que isso vai ser inevitável. E é engraçado, né, porque à medida que o PT vai recuando das suas bandeiras históricas, tem uma regra na política que vai ter sempre alguém que vai ocupar o lugar que você deixou. E o Aécio Neves [PSDB-MG], que é de um partido de centro-direita, se posicionou a favor do casamento igualitário. O Geraldo Alckmin [PSDB-SP] também. Acho que tem um consenso que vai crescer. E, mesmo que não tenha aqui todo o debate que teve na Argentina, o fato é que muitas pessoas aqui vão se casar. E isso tem um efeito na sociedade, um efeito lento, mas tem. O apoio dos artistas foi fundamental. O fato de a Daniela Mercury ter saído do armário. A Marisa Monte, o Carlinhos Brown e o Arnaldo Antunes fizeram a música de apoio.

 

 

Eu acho que a questão do Feliciano por um lado foi uma merda, mas por outro lado foi boa, porque colocou uma figura importante da bancada evangélica num lugar de muita visibilidade. Nós já sabíamos muita coisa sobre o Feliciano, mas a maioria da população não sabia, e agora sabe que, além de ser contra os gays, o Feliciano é racista, é machista. Agora essa bizarrice dele fica visível pro grande público, não só pro público dele.

 

O #ForaFeliciano foi o primeiro antecedente das mobilizações de junho. É uma leitura que a esquerda ainda não acabou de fazer. O #ForaFeliciano reuniu milhares de pessoas em Porto Alegre, em Recife, em São Paulo, em Cabo Frio, em Rio das Ostras, não só nas capitais. Depois teve a questão do preço das passagens, da PEC do Ministério Público, tudo isso vai se juntando. Mas, quando eu fui na mobilização [em 20 de junho] aqui no Rio, na Presidente Vargas, que não teve só 300 mil pessoas, como O Globo fala, teve mais de 1 milhão, teve mais gente que no [bloco de Carnaval Cordão do] Bola Preta. Eu percorri toda a avenida olhando, até porque estava fazendo a cobertura pra televisão argentina. E a quantidade de pessoas com cartazes pelo Estado laico, pedindo “fora Feliciano”, “não à cura gay”, era impressionante.

 

Quando queriam aprovar aquele projeto bizarro da cura gay, a gente aproveitou o momento das mobilizações, quando a sociedade estaria olhando pro Congresso e, como o projeto já tinha o parecer da comissão, o Jean entrou com pedido pra votar no plenário. Porque, naquele dia, com milhares de pessoas na rua, como o PT faria pra votar a favor disso? Só que aí, quando chegou o momento, o João Campos [PSDB-GO] pegou o microfone e disse: não, eu retiro o projeto.

 

Eles também são bons de estratégia, né?

 

A gente está aprendendo [risos]. Mas é uma situação interessante: a aprovação do casamento no CNJ, essas primeiras derrotas da bancada evangélica no Congresso, o Jean com uma popularidade muito grande… E, por outro lado, a questão do Feliciano permitiu começar a construir uma articulação com grupos de diferentes religiões que não querem ser associados a esse discurso fundamentalista. Por isso o rabino Nilton Bonder gravou um depoimento para a campanha do casamento igualitário. O pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista, também se comprometeu a gravar; teve pastores da Igreja Presbiteriana que foram às mobilizações contra o Feliciano, vários padres católicos, mães e pais de santo… Tudo isso somou apoios. E com alguns setores do movimento LGBT que não estão alinhados com o governo petista ou que, mesmo estando alinhados, colocam como prioridade a luta LGBT. É o caso, por exemplo, do Carlos Tufvesson, aqui do Rio, coordenador da Coordenadoria da Diversidade Sexual. Ele é funcionário da prefeitura do Eduardo Paes, e a gente fez campanha pro Marcelo Freixo, ou seja, politicamente estamos de lados opostos. Mas na luta pelo casamento a gente trabalha junto. O Carlos é um exemplo, mas são poucos que têm esse compromisso.

 

Uma última pergunta, agora mais pessoal: por que você milita hoje?

 

Acho que porque eu nasci numa família de militantes, meus pais militaram a vida inteira. E em algum momento isso se combinou também com a orientação sexual. Quando você pertence a alguma minoria que é discriminada, você se dá conta de que tem que fazer alguma coisa. Acho que é isso. E eu gosto! Sempre gostei da política também. Eu tenho uma concepção da política: ela tem que servir para mudar alguma coisa. Não gosto da política abstrata nem daquela coisa que tem muito na esquerda, aquela coisa vanguardista, do cara que tem seu programa, todo certinho, discute com umas quatro ou cinco pessoas e pronto, já acha que fez uma contribuição pra humanidade. Eu quero mudar coisas concretas. A lei de casamento igualitário foi uma coisa concreta, que a gente mudou, vai ficar na história, e daqui a cem anos as pessoas vão estudar na escola. A lei de identidade é a mesma coisa. A conclusão é que hoje tem milhares de pessoas que são mais felizes graças a isso. Elas têm uma vida melhor.

 

 

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*Walber Lustosa colaborou com a entrevista e com o banho de mar.

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