Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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O CÉRVIX DA QUESTÃO | “Eu quis te destruir, minha filha”

Competição e solidariedade começam em casa: uma visão pessoal da rivalidade feminina. Por Clara Lobo

Meu primeiro texto na Geni foi sobre o machismo e a competição feminina. Lá, falava de como as mulheres usam o machismo para tentar se sobrepor às outras, e de como a utilização do pensamento machista era um indício da subordinação feminina ao olhar masculino.

 

Na coluna deste mês, gostaria de retomar o assunto da rivalidade feminina. Desta vez, entretanto, desejo deter-me na relação entre mãe e filha. Para isso, contarei um pouco da minha história.

 

Minha mãe teve duas filhas. Criou-as praticamente sozinha, já que meu pai era o clássico pai ausente (um amigo diz que “pai ausente” deveria ser considerado pleonasmo. Isso, obviamente, é uma das consequências do patriarcado). Tendo sido criada pela própria mãe com ausência de amor e uma rivalidade latente, minha mãe tinha dificuldades em expressar afeição pelas filhas. Para ela, o tal amor materno incondicional era “ridículo”, e ela não nos amaria “apenas” por sermos suas filhas.

 

Essa dificuldade de amar se tornou mais visível quando chegamos à pré-adolescência. Foi quando ela tomou a forma da rivalidade. No início, eram apenas críticas (aos 11 anos, ao mostrar-lhe um conto que havia escrito, ela o definiu como “medíocre”. No mesmo ano, ao dar-lhe de presente um desenho meu que havia tirado 10 na aula de artes da escola, ela o devolveu, dizendo não gostar daquele “tipo de desenho”). À medida que o tempo foi passando, no entanto, a rivalidade ganhou novos contornos: flertava abertamente com os meus namorados (entrou, certa vez, de calcinha e sutiã no meu quarto e deu um beijo no pescoço do moço) e sempre tomava o partido deles em qualquer situação (um dia, no café da manhã, ao me ver com a cara inchada por ter chorado a noite inteira, ela me perguntou, sorrindo: “O que você fez pra ele pra que ele tenha brigado com você?”). Além disso, passou a ter delírios paranoicos em relação à minha irmã, acreditando que ela a apunhalava pelas costas.

 

Minha mãe, provavelmente, repetiu conosco um padrão que viveu na infância. Uma menina que não se sentia amada pela mãe; que era criticada, chamada de feia, “monga”, e com quem minha avó obviamente rivalizava. Minha mãe, certa vez, contou-me uma história que nunca esqueci: aos 16 anos, ela recebeu seu primeiro salário como assistente em uma loja. Chegou em casa feliz e deu todo o seu dinheiro de presente à minha avó. Ao ter as notas em suas mãos, minha avó jogou-as ao chão, com desdém: ela não precisava daquele dinheiro, do dinheiro dela. Minha mãe abaixou-se e colheu as notas caídas no chão, espalhadas aos pés de sua mãe.

 

Posso apostar que muitas gerações de mulheres na minha família sofreram coisas semelhantes. Posso apostar também que esse comportamento é mais comum do que gostamos de acreditar.

 

Diferente das mocinhas do meu primeiro texto, entretanto, minha mãe nunca usou do machismo para competir. Nunca a ouvi chamar mulher alguma de vagabunda, galinha ou nada congênere. Em certo sentido, minha mãe era uma feminista, pois acreditava e vivia a emancipação feminina, mas uma feminista que tinha uma relação péssima com mulheres.

 

Daí chego à palavrinha da moda, a tal sororidade. Considerada linda por umas e cis-branca-hétero-privilegiada por outras, a tal sororidade foi o que minha mãe nunca viveu. Ela, que nasceu em uma família pobre e sem educação formal, que era a primeira filha após quatro filhos homens, e que permaneceu como única filha até quase os dez anos de idade, teve, na relação com a sua mãe, seu principal modelo de interação feminina. Assim, uma boa parte do que ela veio a se tornar foi construída nessas bases.

 

 

Ao contrário da minha mãe, eu tive a sorte de ter uma irmã apenas dois anos mais nova, com quem teci laços profundos de amor, os tais “indissolúveis”. E foi nossa irmandade, também conhecida nos novos círculos como sororidade, que fez com que nos apoiássemos uma na outra para conforto e segurança. Pois, diferentemente do que li em um blog feminista, sororidade não é ter posições acríticas ou pôr panos quentes em situações desconfortáveis. Sororidade é um sistema de apoio feminino, em que mulheres se protegem e se fortalecem, e onde a competição é arrefecida em favor da solidariedade.

 

Entendo que algumas militantes vejam o termo com desconfiança, mas acredito que sua importância transcenda os espectros de classe, raça, orientação sexual e identificação de gênero. Arrisco-me inclusive a dizer que, em populações pobres, onde há pouco tempo livre, educação ou lazer, é ainda mais importante que a sororidade exista como um verdadeiro movimento de inclusão.

 

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Permito-me uma leve digressão e finalizo, então, pelo introito: o título desta coluna, “Eu quis te destruir, minha filha”, foi uma das coisas mais importantes que já ouvi da minha mãe. A confissão e o arrependimento não apagam o vivido, mas ajudam a seguir em frente. Sei que ela não recebeu isso da própria mãe. E, se algo em mim recusou-se teimosamente a ser destruído, tenho certeza de que muito se deveu à minha relação com Dora, meu amor, minha irmã.

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