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ESCULACHO | São Paulo – a cidade grande de cabeça pequena
Micronarrativas, fantasiosas ou não, na cidade esquizoide que era da garoa e hoje não tem água. Por Alciana Paulino.
Liberdades fronteiriças ou liberdades vizinhas
Os condôminos reuniram-se, no domingo de manhã, para deliberar quais os melhores dias e horários a Srta. Lucélia do 115 Boreal poderia receber seus amantes, cachos e casos.
Acharam que os melhores horários seriam quando as crianças não estivessem presentes. Que fossem descartados os horários escolares. Apesar de animada a mesma senhorita não trabalhava com sexo, tinha seu expediente diurno num escritório na Berrini.
Discutiram. Reafirmando o valor da família, Dona Ofélia, do 811 do Austral, lembrou que, a partir do recente censo do condomínio, a maior parte dos moradores era religiosa. Então foram consagrados os dias e horários em que Lucélia poderia professar sua própria fé. Receberia as pessoas que quisesse, desde que respeitasse os demais. Não fazendo barulho e com as janelas cerradas.
Foi por consenso que vetaram os espaços da academia, da piscina, da churrasqueira e parque para os visitantes de Lucélia. Mas, mesmo assim, ela ficou feliz, nunca pensou que teria tanta liberdade numa cidade tão conservadora quanto São Paulo. Quem ficou triste foi a pastora da Igreja Neopentecostal vizinha. Não poderia mais ter com Lucélia.
Encerrado o assunto “Lucélia do 115 Boreal” passaram para coleta seletiva e diminuição do consumo de água. Aí o debate pegou fogo.
Lúcida Miriam
Nunca vou me esquecer de Miriam. Foi quem nos recebeu em um puteiro na Augusta, ela protegeu as três bêbadas sem noção que entraram ali só para ver como era. Ela afastava os clientes que chegavam chegando e dizia “Sai fora, malandro! Elas são tão clientes quanto você”.
Sentou em uma mesa conosco e disse que, para garantir a sua companhia, tínhamos que manter os nossos copos e o dela cheios. Tarra fázil.
Queríamos saber como era a sua vida. Miriam achou engraçado demais mulheres tão jovens interessadas na vida de uma puta de meia idade. No quadro geral da situação tinha uns boys. Quem eram aqueles caras? Durante as três horas que passamos ali nenhum deles contratou um programa. Apenas bebiam e ficavam “tentando levar de graça”.
Negra, 38 anos, gordelícia. Começou contar a sua história. Disse que sofria violência em casa e trabalhava numa lojinha de roupas no mesmo bairro em que morava. Era em Itapevi? Jundiaí? Não me lembro. Mas sei que tinha estação de trem.
Um dia ela encheu o saco dessa vida de merda e foi prum puteiro no centro dessa cidade que tem trem. Começou a trabalhar lá até que um amigo do irmão descobriu que estava ali. Nessa época tinha 16 anos. Mas se alguém perguntasse de novo ela teria 18. Temeu pelo que iam falar para a sua família, a humilhação que a mãe passaria. Veio para São Paulo.
Disse que quando era nova ganhou muito dinheiro, era gostosa demais! “Cochona, sabe?” Até uns caras com dinheiro queriam ter ela só para eles. Ela respondia que “trabalhar pra um só é ser escrava” e a bisavó dela já tinha sido.
Perguntei se tinha medo de DST, se se precavia. Ela disse que a precaução era Deus mesmo. Que já pôde se dar ao luxo de fazer só com camisinha, mas que agora cobrava um a mais para ir no pelo. Mas que isso era segredo, pois dentro da norma da casa “só com borracha”.
Deve ser filha de Xangô. Foi a melhor anfitriã que alguém poderia ter. Ensinou-nos como sensualizar no pole dance. Deu dicas de como não cair na lábia de vagabundo. E disse que família é importante. Que faz tudo por seus três filhos e cuida da mãe idosa. Até poupança fez.
Perguntei o que ela faria quando se aposentasse. Ela disse que provavelmente voltaria a trabalhar numa lojinha de bairro ganhando para o sustento, pois a casa própria já estava encaminhada.
O que mais me encantou em Miriam era a forma descomplicada que falava das coisas. Sem peso. Simplesmente foi assim. Eu passei por isso. Passei e agora é passado. Sempre com sorriso despachado.
Torço para que tudo esteja bem com ela, apesar do convite, ensaiamos, mas não voltamos para vê-la. Ela disse que ia gostar de ser amiga de gente doida como nós. E hoje eu fico pensando que gostaria de ser amiga de gente lúcida como a Miriam.
Champa na esquina
Esses dias, voltando para a casa, vi uma cena memorável que deveria se repetir em todos os lugares do mundo. Era uma reunião de putas. Devia ter umas dez, doze delas na esquina entre a Praça Vicente Rodrigues e a Avenida Valdemar Ferreira. Várias com uma garrafa de espumante na mão e todas gritando em ritmo de funk “champa na esquina… pa-ra-pá / champa na esquina/ champa na esquina… pa-ra-pá / champa na esquina”.
Os carros passavam, buzinavam. Uns imbecis xingaram umas travestis que compunham o grupo. Elas não ligavam, continuavam a entoar, algumas marcando o ritmo com o braço para o alto.
Nenhum carro parou querendo contratar uma das meninas. Medo ou sensibilidade?
Eu passei sorrindo para ver se alguém me convidava para a festa. Não foi o caso. Mas a musiquinha e o anseio por festa impregnou.
Agora meu sonho é ser convidada para uma “champa na esquina”. Quem topa?
E lá em casa…
Bom, graças aos deuses e deusas, Walber e eu continuamos muito bem, mas as vizi continuam achando muito estranho esse povo que entra e sai daqui de casa.
Nossa conclusão é que somos muito mais simpáticas do que esse povo pálido do Butantã.
No mais, deixamos o povo falar, adoramos ser personagem da imaginação alheia. Aliás, acho que escrevo sobre a minha vida por causa disso. Será? Vou levar isso para a terapia, vamos ver o que é que sai.
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Ilustração: Gunther Ishiyama.