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Impacto
O cantor Hamed Sinno fala sobre música, violência, militância e a vida LGBT no Líbano. Por Gui Mohallem, de Beirute
No verão de 2010, por questões de segurança, o tradicional Festival Internacional de Baalbek havia sido transferido para Biblos, cidade considerada a mais antiga do mundo, com 10 mil anos de ocupação contínua. Nesse evento, Hamed Sinno, vocalista da banda Mashrou Leila (pronuncia-se mach’rua leila), em sua primeira performance para um público tão expressivo – eram milhares de pessoas, inclusive o então primeiro-ministro do Líbano –, levantou uma bandeira do arco-íris e amarrou-a ao pedestal do microfone.
Durante a pesquisa para a matéria sobre o panorama da luta LGBTIQ no Líbano, esse fato foi mencionado e comentado diversas vezes, em todas as entrevistas que fiz. “Ninguém nunca tinha feito isso antes.”
A banda, formada por seis ex-estudantes da Universidade Americana de Beirute, existe desde 2008 e vem ganhando popularidade não só nos países árabes, mas em muitos lugares do ocidente. Recentemente, fizeram uma turnê que passou por Toronto, Montreal, Londres, Paris e Barcelona. As letras de suas músicas abordam temas tabu para a sociedade árabe, como relacionamentos inter-religiosos, o amor homossexual e questões políticas locais.
Hamed e eu nos encontramos no Bardô, o mais conhecido bar gay de Beirute. Depois de caminhar por um longo corredor lateral, chego à entrada do bar, que fica nos fundos. Segundo um dos gerentes do local, Joseph Aoun, é para preservar a privacidade dos frequentadores. O ambiente é aconchegante, os garçons são lindos, a comida é excelente e a conta é salgada. Quando marquei a entrevista, queria entender quem era esse personagem que fazia história aos 22 anos – hoje ele tem 25 – e se ele tinha consciência de sua importância para essa luta.
Ouvi dizer que você saiu do armário durante um show. Foi em que cidade?
Isso foi em Biblos, mas não foi exatamente que eu saí do armário. Antes de mais nada, eu nunca estive dentro do armário, já era assumido desde antes do começo da banda.
Como foi isso?
Nada de mais. Eu já era assumido pra amigos, família, foi um processo bem gradual, na verdade. Nunca sentei com os meus pais e disse: “Olha, gente, eu sou gay”. É uma coisa muito americana, de filme gay dos Estados Unidos isso de chamar pra conversar. Eles sempre souberam, mas, no geral, acho que a maioria das famílias libanesas não falam sobre sexo o bastante pra que uma conversa sobre sexualidade seja necessária. Pra começo de conversa, meus pais não precisam saber com quem eu estou dormindo, nem se essa pessoa é um homem. Eu só tive esse tipo de conversa com eles quando estive num relacionamento sério, porque eu planejava casar e tal. Dessas coisas eles têm que saber.
O que aconteceu em Biblos foi meio casual. A gente estava tocando e tinha umas pessoas na plateia com a bandeira do arco-íris. Eu fiquei muito emocionado de ver algo assim numa plateia no Líbano, era algo sem precedentes, então fui lá e peguei a bandeira. Não foi uma saída de armário, de jeito nenhum.
Você não falou “eu sou gay” ou algo assim?
Não. Mas eu já tinha dito isso em entrevistas. Sempre que alguém pergunta, sou bastante honesto.
Bom, mas, mesmo assim, também é algo sem precedentes no Líbano que um artista se posicione com a bandeira do arco-íris perante um grande público e na frente do primeiro-ministro, que até saiu do lugar depois disso.
É, mas o primeiro-ministro não foi embora por causa da bandeira. Esses figurões da política vão pra esses eventos, mas eles não estão nem aí pros artistas, vão só porque têm assessores que dizem aonde eles têm que ir, onde devem ou não aparecer. Por isso ele estava lá. E, se um tipo desses fica mais de 30 ou 45 minutos num lugar, tem problemas de segurança envolvidos. No geral eles têm que sair logo.
Aliás, no dia seguinte, o jornal do partido do primeiro-ministro escreveu uma crítica muito boa sobre o show.
Sério? É interessante como as pessoas me contaram essa história como se o primeiro-ministro tivesse ficado irritado com a bandeira.
É, as pessoas procuram dramas onde eles não existem.
Mas onde existe o drama, então? Existe drama no Líbano com relação à sexualidade? O que você acha?
Acho que, se você vem de uma família privilegiada, você está seguro. Pode sair do armário, ir pra bares gays e tudo bem. Se sua família não é privilegiada, aí você vai ter problemas com a lei. A polícia persegue a classe trabalhadora, não a burguesia.
Olhe os preços do menu aqui do Bardô, os drinques. Considerando a economia local, este é um lugar bem burguês. As pessoas que vêm aqui são homens gays de classe média alta, com renda extra, que podem bancar estar aqui. A polícia não vem pra cá, ela vai a lugares como as boates Ghost, Posh, onde estão pessoas da classe trabalhadora, que não vão conseguir mexer os pauzinhos no caso de irem parar na cadeia. A polícia não vai se meter em problemas por prender essas pessoas.
Mas, mesmo nesses lugares, não é que você necessariamente vá pra cadeia por frequentá-los. Nosso sistema policial é tão corrupto que é extremamente inconsistente. Você só vai pra cadeia se os policiais decidirem, por um motivo arbitrário qualquer, que naquele dia eles vão fazer a batida naquele lugar. Quando acontece, é terrível, as violações aos direitos humanos que ocorrem neste país, com relação a isso, são desastrosas. O teste da vergonha, exames do reto, obrigação de sair do armário em público, é terrível. Isso sem contar as agressões físicas e verbais, a humilhação… Teve o caso de uma travesti que foi forçada a se despir e a polícia tirou fotos dela, só pra mostrar que ela tinha um pênis. Humilhações terríveis. Mas, repetindo, essas coisas não acontecem se você for privilegiado.
Privilégio quer dizer dinheiro, certo? Mas também quer dizer Beirute? Ouvi dizer que Beirute é um lugar seguro, mas e as montanhas e o vale?
Ali a história é outra. Não sei nem se a polícia existe lá. Por isso é tão fácil cultivar drogas ou traficar armas nesses lugares.
Mas, em Beirute, essas coisas acontecem o tempo todo. Há alguns anos teve o caso de dois homens se beijando na escadaria de um prédio em Sissine, que é um bairro de classe média alta aonde as pessoas vão consumir coisas. Tem shoppings, restaurantes, é uma área muito movimentada, e a polícia arrastou os dois pra fora do prédio, tirou as roupas deles, bateu neles na frente de todo mundo, e ninguém fez nada.
Você já sofreu alguma agressão homofóbica?
Eu recebo ameaças o tempo todo, muito assédio on-line, pelo Twitter, Facebook, YouTube. Recebo muito ódio. Mas você sabe como é: se você consegue lidar com a homofobia quando é criança, na escola, se você não se mata depois disso – porque nem o governo consegue parar com esse bullying –, então você consegue lidar com isso quando é adulto.
Teve um caso, uma vez, durante uma coletiva de imprensa em Túnis, tinha um cara que era muito homofóbico. Não tenho nem ideia de por que ele estava lá, mas o tempo todo ele ficou me insultando. Começou insinuando, dizendo coisas como “quem são suas influências? Elton John?”. E continuou, foi forçando a barra cada vez mais, eu comecei a responder e a coisa virou uma grande briga. Não física, obviamente. Eu já fui agredido fisicamente, mas isso foi antes da banda, não teve nada a ver com a banda, só com ser gay mesmo.
Como é a sua família?
Nós somos de Beirute, de um contexto bem privilegiado. Não quer dizer que seja fácil, também, porque… Sabe, aqui, por causa da história e da guerra, em algum momento essas ideias de classe e de status social se entrelaçaram com as seitas. Em Beirute, se você é sunita, por exemplo, você vai ostentar isso, e as pessoas vão dar valor pra isso porque elas acham que é melhor ser sunita do que ser xiita, maronita ou sei lá o que mais. Então minha família é muito conservadora no que diz respeito à religião e tem muito orgulho disso. Eles usam véus e esses casacos que cobrem tudo, dos braços aos tornozelos. Aí eles não gostam muito de mim, nesse ponto.
Quando era pequeno, com essa religiosidade toda, eu achava que ia para o inferno, porque essa é uma das interpretações do que o Corão diz sobre a homossexualidade. E a única outra referência que eu tinha da homossexualidade era quando minha família ficava sabendo que alguém da comunidade era gay, e aí todo mundo destruía essa pessoa verbalmente durante o jantar. “Viado de merda” e coisas assim. Aí você liga a TV, no Líbano, e os únicos gays que você vê estão sendo ridicularizados, apresentados como aberrações em um talk show ou usados como motivo de piada.
Na escola, eu sempre sofria bullying, o tempo inteiro. Eu nunca participei do time de futebol, sempre estive no coral, e ainda usava roupas muito coloridas, esse tipo de coisa. Você sabe, aquele bullying em que você se sente isolado, não conhece outros gays e a coisa toda fica muito pior do que ela já é. Na verdade, ela se torna um problema pra você porque ela se manifesta como um problema.
A única coisa que me impediu de, literalmente, me matar foi que, num momento, eu comecei a assistir [a série estadunidense] Will & Grace pela internet. Mesmo sendo muito estúpida. Ou então eu baixava um filme sobre um casal gay vivendo em São Francisco, coisas assim. Até que eu acabei encontrando o Helem [primeira instituição de direitos humanos voltada para o público LGBTIQ no mundo árabe], e isso me ajudou. Comecei a trabalhar com eles.
Acho que essa é a importância de qualquer gay em Beirute se assumir em público, principalmente os que têm o privilégio de ter uma vida pública. Acho que isso é essencial, porque mais importante que conquistar os nossos direitos é que a gente não se suicide. A gente tem que se certificar de que a próxima geração, os meninos de 15 anos, os gays dessa geração não se sintam completamente sozinhos. Isso é mais importante que qualquer protesto, que dizer que nós temos o direito de casar e de sermos tratados igualmente perante a lei. Mais importante que tudo é que a gente possa se ajudar.
Eu conheço muita gente que apanhou. Georges Azzi recebia ameaças de morte o tempo inteiro. Quando eu comecei a trabalhar no Helem, Georges era o presidente da ONG ou algo assim, e sempre que ele aparecia na imprensa, dando entrevistas, ele nunca falava sobre a própria sexualidade, porque sabia que, se cometesse o erro de dizer “eu sou gay”, iria para a cadeia e o Helem acabaria.
Nós já avançamos nesse ponto. É fácil, para mim, dizer que sou gay, porque tenho amigos no mundo inteiro que causariam problemas diplomáticos [para o Líbano] se eu tivesse algum problema com isso. Tem revistas, tem militantes dos direitos LGBT, tem as Nações Unidas, um bilhão de coisas. A esta altura, eu posso fazer isso, pessoas públicas podem. E é importante que elas saiam do armário.
Desculpa se eu estou vociferando.
Tudo bem! Mas então você trabalhou no Helem?
Quando eu tinha 18 anos.
Qual sua idade agora?
Vinte e cinco. Eu trabalhei ali até os 20 fazendo coisas variadas. Ficava por lá, no centro comunitário, às vezes fazendo coisas administrativas ou participando de reuniões. Mas chegou um ponto – talvez porque o governo estivesse reagindo contra a Helem – em que era impossível pra entidade fazer alguma coisa. A mudança que está acontecendo no Líbano nos últimos anos é, na verdade, resultado de pessoas independentes, de muitos homens gays de Beirute saindo do armário e demandando um estilo de vida, uma cultura próprios.
É ótimo ter uma ONG, foi muito bom para mim, quando eu tinha 18 anos, ver que existia algo assim. Mas não foi essa a militância que eu quis fazer, depois dos 20 anos.
Como você vê a situação das mulheres, especialmente as lésbicas, aqui? Elas são desconsideradas em tantos níveis, não?
São, sim. É uma pena que elas sejam também desconsideradas no movimento LGBT e na Helem, e acho que foi por isso que acabaram fundando a própria ONG. É muito complicado, mas eu acho que esse tipo de isolamento entre gays e lésbicas é completamente desnecessário. Pelo que eu entendo, as lésbicas têm que se preocupar com duas coisas: com a sexualidade e com o gênero, porque aqui as mulheres são tratadas como lixo, sejam lésbicas ou não, mas as lésbicas são tratadas como um lixo maior ainda. Ainda assim, essa separação entre homens e mulheres [no movimento LGBT] parece de um feminismo muito à moda antiga. O patriarcado também faz essa divisão. Se as mulheres são tratadas como lixo, isso quer dizer que há uma expectativa igual com relação aos homens.
O que eu quero dizer é que o gênero é definido em termos de diferença: ser mulher é algo definido em oposição a ser homem, então se há expectativas com relação às mulheres, há expectativas do mesmo jeito com relação aos homens. Do mesmo jeito que a gente diz “as mulheres não devem trabalhar fora”, a gente diz “os homens devem trabalhar fora”, o que é igualmente difícil. Então, pra mim, essa ideia de que você pode separar a militância por gênero e falar de feminismo sem tocar na masculinidade é muito problemática. A militância de gênero tem que chegar num ponto em que não haja expectativas só por você ter uma vagina ou um pênis. Não dá pra dizer que as mulheres deveriam poder trabalhar, sem dizer que os homens deveriam não ter que trabalhar, ou fica muito contraprodutivo. Eu odeio essa afirmação de que o patriarcado só oprime as mulheres.
Como assim?
No Líbano, quando a gente fala que as mulheres são oprimidas pelo patriarcado, a gente fala sobre como as mulheres têm que permanecer virgens até o casamento, que elas são secundárias com relação aos homens, que não devem trabalhar fora ou não devem aparecer em público de determinada forma. Mas há expectativas opostas com relação aos homens! Há muita pressão dos dois lados. Essa ideia de que os homens têm que trabalhar fora e ganhar dinheiro pra sustentar a família, sem a ajuda da esposa, é muito problemática e praticamente impossível para a maior parte dos homens do país.
Os homens precisam se apresentar sempre do mesmo jeito, têm que ser rudes, se meter em brigas, fazer o serviço militar, tem todas essas expectativas. Se eu tiver que ter esposa e filhos e sustentá-los, nesta economia… eu prefiro me matar.
Nós somos de gerações diferentes, eu e você. Na minha geração, nós não tínhamos internet, então isso que você mencionou da solidão aconteceu comigo até os meus 18 anos e foi a parte mais difícil. Como você disse, é quando a gente quer se matar. Eu escutava da minha família o tempo todo: “Não existem gays libaneses”.
Não existem no mundo árabe, né?
Mas eu ouvi dizer que, na sua geração, as coisas estão mudando, os jovens de hoje no Líbano são mais soltos que os da minha geração, no que diz respeito às expectativas de aparência masculina.
Não acho que seja só com homens gays, acho que é com as pessoas, no geral. Nós temos expectativas de gênero mais relaxadas. Hoje, no Líbano, é mais tranquilo pra homens e mulheres fazerem coisas que não podiam fazer há 20 anos. Mas nós ainda não chegamos no ponto de não haver expectativas, um homem andando de saia na rua ainda é um grande problema, e isso não é justo.
Eu entrevistei a Diana Abou Abbas, gerente da Marsa (clínica de saúde sexual recém-criada por iniciativa do Helem), e ela, que tem cabelo curto, disse que enchem o saco dela o tempo todo por causa disso.
É, enchem meu saco por causa dos meus brincos.
E, nesse cenário todo, como ficam as pessoas transexuais? Elas são parte da comunidade? Têm alguma representação?
Não muito, o que é uma pena. É um tipo de isolamento que existe muito. Aqui neste bar, por exemplo, o Bardô, quem vem aqui são os homens, basicamente. Mesmo as lésbicas aqui são muito raras.Tem um valor dado à masculinidade que está internalizado na comunidade gay. Por exemplo, espera-se que um cara tipo machão, de barba, seja definitivamente ativo, assim como um cara mais delicado seja passivo. É homofobia e heteronormatividade, quando você supõe que o parceiro que penetra é o masculino. Então as drag queens, as transexuais e as travestis são deixadas de fora da comunidade. E na mídia elas são tratadas como aberrações.
É o caso do Bassem Feghali, por exemplo?
O Bassem Feghali tem uma particularidade, porque ele é tratado como performer. É bem interessante, porque ele é o performer mais famoso do Líbano, e ele marca essa posição. Em entrevistas, ele nunca se apresenta como drag queen, nunca está vestido como uma de suas personagens, e sim como homem.
O jeito como ele joga com o gênero não é visto como uma ameaça, porque a maioria das pessoas não leva a sério. Se ele se apresentasse publicamente como uma travesti, em vez de drag queen, ia ser muito mais difícil para o público aceitar. A lógica das performances é, basicamente, que ele tira sarro dele mesmo, o que é muito confortável para o patriarcado: essa pessoa que se apresenta como uma exceção ao patriarcado faz isso tirando sarro de si mesma. Então os babacas machistas ficam tranquilos, isso não os ameaça.
Você se considera um ativista?
Acho que é muito difícil fazer algo público e não considerar isso um ativismo, seja gay ou não. Eu acho que Haifa Wehbe é uma ativista, por exemplo.
Quem?
É uma grande estrela pop libanesa, que fez implantes [de silicone nos seios], cirurgias, e faz dinheiro com uma música muito superficial. Acho que inclusive isso é ativismo, já que ela está fazendo música com objetivos comerciais e se apresentando como essa mulher ideal, que as pessoas querem ver. A mensagem dela é que tudo bem esse padrão de gênero, e tudo bem o capitalismo, mesmo na arte. Essa mensagem é de um ativismo muito sério, é a luta por uma certa ideologia, e, quando você luta por alguma ideologia, isso é ativismo.
Você luta por alguma ideologia?
[Hesita.] Acho que… sim. Não acho que seja possível operar sem ideologia, tudo o que você faz, o que qualquer pessoa faz, é político. Assim que a gente pagar a nossa conta aqui, a gente vai estar dizendo que tudo bem que esta instituição custe esse tanto, que tudo bem este sistema econômico, tudo isso além de outras muitas coisas que estamos dizendo por vir aqui – que tudo bem vir pra um bar gay, por exemplo. Um monte de coisas. E essas coisas são politicamente consistentes.
Eu discordo de você nisto: quando você segura a bandeira do arco-íris no palco, isso sim é uma declaração, é totalmente diferente de pagar uma conta.
Tem um impacto visual diferente. Mas, ok, considere o seguinte: digamos que eu nunca tivesse saído do armário, nem fizesse música, nem tivesse tido nada a ver com a militância LGBT. Eu estaria tornando as coisas mais difíceis para a próxima pessoa que quisesse fazer uma música sobre homossexualidade, se assumir em público, e, quando eu dificulto, o que estou fazendo é ser um ativista da ideologia oposta.
A questão é: não tem como fazer algo em que você não acredita. Se eu não tivesse levantado a bandeira, então obviamente eu acreditaria que tudo bem não levantar a bandeira.
Não concordo. Por exemplo essa cantora que você mencionou, a Haifa Wehbe, talvez ela nem esteja pensando no que está fazendo, esteja só seguindo o que esperam dela, porque só seguir é mais fácil. Não levantar a bandeira é bem mais fácil.
Só seguir o fluxo também é um posicionamento. Mas não é resistência, claro.
Não é. Não fazer nada é um ato, mas não um ato voluntário, entende? É só se deixar levar.
Não necessariamente.
Eu entendo o seu ponto de vista, de que todo mundo é militante, mas é que, quando você gasta seu tempo pensando nas coisas, quando gasta seu tempo se posicionando perante as coisas, às vezes uma posição contrária a elas, na frente de uma plateia, as pessoas vão ser impactadas por você. É uma militância diferente de só viver a sua vida como todo mundo quer que você viva.
Não sei. Acho que quando você vive como todo mundo espera, isso também tem um impacto, porque as pessoas vão pensar: tudo bem fazer isso. Se você só segue a corrente, e faz isso em público, isso também é um posicionamento, e a plateia vai dizer: “Ok, as coisas continuam do mesmo jeito”.
Quer uma prova de como isso tem um efeito? Teve um momento em que as mulheres libanesas quiseram se parecer com essa estrela pop. Eu estou falando sério. E inclusive as transexuais queriam se parecer com ela, o que é interessante, as trans que se operavam faziam cirurgias plásticas para se parecer com a Haifa Wehbe ou com a Nancy Ajram, porque ambas se tornaram a mulher ideal libanesa. Então essas pessoas estavam só seguindo o sistema, dizendo que tudo bem fazer música para perpetuar o sistema capitalista, e tudo bem ter essas expectativas de gênero. Você vai no show dessas cantoras, e as mulheres que estão lá idealizam esse tipo de feminilidade, assim como as cantoras, e elas vão pra casa e querem ser iguais. Isso é ativismo, você pode chamar de não intencional, que seja. Mas, se você é condescendente, isso tem um impacto, e, se você resiste, isso também tem um impacto.
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