Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

linguagem

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Toda palavra possui feitiço

Palavras fecham feridas e empoderam vítimas contra a manipulação da culpa. Palavras convidarão à devida transformação nas ruas. Por Giovana Bonamin

 

“Encontrar palavras para aquilo que temos diante dos olhos é qualquer coisa que pode ser muito difícil. Mas quando chegam, batem com pequenos martelos contra o real até arrancarem dele a imagem, como de uma chapa de cobre.”

Walter Benjamin. Imagens de pensamento. Porto: Assírio & Alvim, 1984. p. 184

Palavras nomeiam espíritos, feitiços, o que está, o que poderia ser. E o que não está, o que tem que ser. A palavra correta intriga, mobiliza, toca a campainha dos juízes. Qualquer palavra está colorida (ou pintada) do sonho e da política daqueles que mais repetem suas sílabas.

A palavra faz presente o ausente, o invisível e o místico. A palavra tem o poder de rememorar histórias que não deveriam se repetir. Palavras desfazem trabalhos e estão à disposição dos sonhos e da justiça.

Desaparecido é uma dessas palavras poderosas. A pessoa desaparecida não está. Mais. Ela foi vista há uma eternidade por quem a ama e jamais foi encontrada sequer por quem não se importa com sua existência. Pessoa desaparecida não tem status de morta. É palavra triste que deposita todas as suas fichas na esperança, na mobilização e na justa resolução do mistério. Desaparecidos têm nome, têm história, têm família e amigos, como tinha o Amarildo. Ao pronunciar desaparecido, todo o amor que essa pessoa recebeu e recebe perturba até os corações mais frios.

Estupro é palavra que dá arrepio. Faz lembrar do Maníaco do Parque, do Homem do Saco, do Bandido da Luz Vermelha, da vulnerabilidade completa diante de monstros. É uma palavra dolorosa de dizer, mas é a mais correta para usar em casos de contato sexual não consentido. É a palavra mais poderosa para ser pronunciada por suas vítimas. Ao dizê-la, vítimas desfazem seus sentimentos de culpa, seus medos e a vergonha de se assumir como vítimas. Promovem denúncias, paralisam agressores. É feitiço para começar a fechar feridas e começar uma nova vida.

Assassinado faz chorar e tira fôlego. É uma palavra adequada para usar em casos de pessoas que foram empurradas, contra sua vontade, para o abismo desconhecido da morte. Não deveria ser palavra exclusiva de vítimas famosas ou vítimas de serial killers. Ainda que descrições técnicas de assassinatos divulgadas pela polícia e pelos jornais nos anestesiem, o horror da perda violenta de uma vida jamais pode ser burocratizado. Nenhuma pessoa é morta a facadas, a pedradas etc. Pessoas são assassinadas por causa da intolerância de outras. Pronunciar assassinato serve para unir todas as vítimas e familiares sob a mesma palavra, numerar casos, conhecer causas/circunstâncias recorrentes. Essa palavra faz trabalho contra a apatia, a indiferença à vida humana e contra a falta de políticas públicas para a redução de assassinatos.

Terrorismo de Estado é a expressão que melhor define os “excessos de violência” sistemáticos, planejados e postos em prática pelo Estado, que deveria proteger as pessoas. Nessas ocasiões o Estado pode dizer que “foram excessos isolados” e tende a negar qualquer tipo de recorrência. Pronunciar terrorismo de Estado é feitiço pra fazer governantes tremerem diante de seus efeitos: a real compreensão dos excessos, a real compreensão da natureza dos terroristas, a real compreensão de que um Estado essencialmente violento não está pensado para erradicar a violência.

Militantes pela diversidade e pela igualdade de gênero, somos bastante cuidadosos com palavras. Por meio delas descobrimos que não nos encaixávamos nos “padrões”. Palavras foram usadas para nos maltratar, humilhar, isolar, estigmatizar e submeter. Foi por meio delas, além das experiências, que constituímos uma comunidade de comuns, chamados de viados, putas, pervertidos, pecaminosos, entre milhares de outras expressões que não valem a pena ser repetidas.

Quantas bíblias poderíamos escrever com cada desaforo ou lição que ouvimos ao longo de um ano?

Escrevo esse texto para convidar ao uso da força feiticeira das palavras para reverter sermões e feitiços que têm sido feitos contra nós, ao longo de séculos.

Joga pro universo e pro plenário

Palavra é uma caixa que contém coisas de toda espécie. Pode conter maldição, bênção e profecia.

Palavras podem bagunçar o ar e o futuro com sua força, com feitiços que alteram caminhos de vida.

Leis, julgamentos, sermões e homenagens são mais feitas de palavras do que de fatos. É difícil colocar fatos em palavras.

 

O feiticeiro eficiente sabe que suas palavras são potentes no passado, no presente e no futuro: são transcendentes e eternas. Suas palavras invocam memórias e experiências passadas para que sejam mantidas ou modificadas, oferecendo libertação e felicidade aos interessados. Elas, ao ser pronunciadas, escutadas e repetidas, dilatam o tempo presente em esperanças.

O político com intenções e/ou métodos messiânicos será mais parecido a um feiticeiro à medida que suas palavras sejam mais sagradas e/ou miraculosas. Semelhanças entre políticos e feiticeiros não são acidentais, porque ambos possuem, sim, comportamentos parecidos: realizam futuros e alegrias segundo prescrições rigorosas de palavras no campo da magia ou da burocracia. Com um pé em cada setor, sabemos que não é incomum descobrir laços de amizade, cooperação ou imitação entre eles.

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Palavras diferentes, leis diferentes, feitiços diferentes

Num regime democrático, se espera que cada político seja representante do povo. A gente sabe, como qualquer feiticeiro sabe, que o povo se divide em interesses mil, e que não existe “o interesse do povo”. Se existisse um interesse comum, não existia feitiço, nem política, e tava tudo resolvido até o ultimo dos dias. Todos felizes.

As vidas do feiticeiro e do político têm suas complicações diárias. O povo está fragmentado. Cada pedaço do povo pede coisas diferentes, frequentemente contraditórias. Outras vezes, pedaços do povo que se detestam se atrevem a pedir a mes-ma coisa! Pra deixar tudo mais confuso, pedaços diferentes do povo evitam usar as mesmas palavras ainda que queiram a mesma coisa. Por pura distinção e segmentação do mercado, acabam fazendo feitiços diferentes, quando poderiam estar armando um caldo poderoso.

Vamos supor que 40% das pessoas de um grupo apoiam a união civil entre “pessoas do mesmo sexo”, e outras 32% são militantes pelo casamento igualitário. Essas pessoas potencialmente estão do mesmo lado. Potencialmente. Casamento igualitário e união civil são, na prática, expressões diferentes que beneficiariam o mesmo grupo de pessoas, com efeitos parecidos. Uma expressão, no entanto, é mais forte do que a outra ao imaginar, conceber e legislar possibilidades futuras para casais de pessoas com a mesma identidade de gênero.

Enquanto uma expressão tem endereço nos rigores da imparcialidade burocrática, a outra pode ser pensada a partir do romantismo livre e puro (nos moldes heteronormativos? Sim, quem sabe, ou não mesmo! Depende é da cabeça que imagina), além de oferecer uma bela alfinetada no bumbum do papa a cada vez que é proferida. Ao vislumbrar imagens que essas duas expressões evocam, há dois caminhos futuros e provocações possíveis. Um vai mais longe que o outro.

A amplitude política também existe nas palavras sujas. Imaginemos que 40% dos homens de determinado país dizem ter sofrido abuso sexual e que 40% das mulheres mencionam ter sofrido estupro. Será que os homens não estariam falando em estupro também, de uma maneira mais “aceitável”? E o que dizer de quem nega o fato de que prostitutas e travestis também são estupradas? Mulheres, homens, travestis e prostitutas devem ter sofrido traumas parecidos em função de uma experiência comum, mas estão usando palavras diferentes, pelo medo consciente ou inconsciente de estar no lugar amaldiçoado da vítima. Todos poderiam estar sublimando suas lágrimas num mesmo ritual desfazendo trabalho e exigindo a justiça, cada um com sua boca, com as mesmas palavras.

O político ou feiticeiro eficiente reúne(m) a maior quantidade de pessoas que se projetam no futuro de maneira parecida e as incentivam a compartilhar (ainda que não saibam) entre elas o uso de palavras poderosas. Jogar pro universo. O político e o feiticeiro são articuladores da formulação de interesses, e com métodos distintos ajudam a construir o futuro.

Política e feitiçaria podem ser eficientes para promover justiça contra vítimas de violência. Recomendo o uso das duas vias.

MANUAL PARA FAZER FEITIÇO

Fazer feitiço e fazer política podem ser parecidos

1. É preciso conhecer, definir e delimitar interesses. Quero poder casar com festa e vestido branco na igreja? Fazer uma cerimonia discreta no civil? Um churrasco na laje é o suficiente? Ou só vai dar pra trocar anéis, no porão da fábrica, escondidos dos raivosos lá fora? O bom feiticeiro sempre pergunta o que o consulente quer e lhe pede para descrever a cena tal qual foi sonhada. A política também é assim, e às vezes exige pedir além do que queremos, para ter poder de barganha.

2. É preciso evitar eufemismos. Como em qualquer ambiente miraculoso, a real eficácia da política e do feitiço que fazemos depende de demandas compreensíveis e indubitáveis. Caso contrário, o feitiço, a receita ou a demanda política podem resultar em coisas não esperadas. Não é só o anjo que não entende reza complicada: a burocracia também. Complicação palavral é oportunidade perdida de convencimento e de realização. Além disso, sempre provoca o risco de que alguém traduza a complicação em um novo projeto feito de palavras não tão adequadas assim. É como se, no meio da reza, o feiticeiro mudasse o feitiço pra deixar mais bonito e amplo, e o feitiço enfraquecesse.

3. É importante usar um conjunto permanente de palavras. Isso ajuda a fortalecer o feitiço. As pessoas demoram pra aprender as frases misteriosas da reza e os parágrafos de um projeto de lei. Somente depois de aprendido, algo pode ser repetido infinitas vezes. É melhor consolidar e aprofundar significados com símbolos e imagens do que modificar palavras. É melhor usar as mesmas palavras para consolidar estatísticas e forçar políticas públicas.

4. Recomenda-se conhecer feitiços inimigos para evitar palavras que querem desfazer o nosso feitiço. Isso também serve para desfazer palavras inimigas, estudando-as minuciosamente para reconhecer incoerências, mostrar pontos de desequilíbrio, revelar mentiras e inconsistências. Tem coisa melhor que denunciar que a lei e o feitiço alheios não funcionam?

5. É essencial não se deixar enfeitiçar pela oferta de conciliação por parte dos inimigos. Se a proposta deles implica em seguir maltratando, humilhando, isolando, estigmatizando, submetendo e silenciando pessoas, não há concessão a ser feita por quem defende diversidade e liberdade.

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Quando usamos as mesmas palavras pra contar, como carneirinhos, as violências sofridas todos os dias, fica difícil nos enganar. Usando números e categorias comuns sabemos o quanto uma violência é volumosa, sistemática, ou não. Além de estar jogando a responsabilidade de justiça para o universo e as autoridades.

Repetir (também sistematicamente) palavras definidoras de violência em situações de violência permite engrossar o caldo para Bolsonaros e Cabrais. Palavras certas invocam entidades amigas da mudança e da transformação. Alertam de que precisamos nos proteger, qual é a verdadeira insegurança pública, para quem convém rezar e em quem seria melhor votar. Palavras fecham feridas e empoderam vítimas contra a manipulação da culpa. Palavras desconstroem o azar porque injetam intenções na construção do futuro. Palavras colocarão as devidas pessoas na cadeia e convidarão à devida transformação nas ruas.

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Fui estuprada. Essa palavra me curou, e este é o meu primeiro texto para a Geni.

Ilustração: Bianca Muto.

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