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O CÉRVIX DA QUESTÃO | Seu corpo é um campo de batalha
O empoderamento da mulher pela sexualização é balela. Por Clara Lobo
As mocinhas do Femen tiram a roupa pelo “feminismo”. Chama a atenção que não haja, entre as despidas, mulheres barrigudas, de peito caído ou enrugadas. Que todas sejam jovens, bonitas e usem jeans justos. E que haja, vinda da direção do Femen, uma pré-seleção baseada na aparência dessas ativistas, que descarta aquelas com sobrepeso e outros desvios do padrão de beleza.
Sexualizar o corpo feminino e usá-lo para atrair a atenção do público é arma utilizada pela publicidade e pela indústria do entretenimento há tempos. Esse tipo de ação, evidentemente, somente agrava e consolida os valores patriarcais, aqueles que reforçam o discurso insidioso de que valemos menos se não formos objeto do desejo masculino. O Femen se utiliza dessa tática – que chama de sextremismo – para atrair atenção para os temas que lhe são caros. Sob o pretexto de “tomar de volta o poder sobre o próprio corpo”, esse grupo pretensamente feminista põe sob os holofotes os corpos das suas ativistas, mas somente aqueles que agradem ao olhar masculino. Pois, se usamos corpos objetificados de mulheres para vender carros e cervejas, por que não usá-los também para fazer propaganda da “nossa causa”?
A pesquisadora Jean Kilbourne afirma, neste vídeo, que a publicidade reforça a visão de que a aparência é a característica mais importante da mulher. Segundo ela, ao transformarmos um ser humano em um objeto, damos o primeiro passo para justificar a violência contra essa pessoa. “Vemos isso com o racismo, com a homofobia. É sempre o mesmo processo: a pessoa é desumanizada e a violência é então permitida.” São coisas diferentes, mas interligadas: a supervalorização da aparência em detrimento de outras características está a um passo (curto) da objetificação; a objetificação está a um passo da indiferença; e a indiferença, a um passo da violência. É uma espiral que não gostamos de descer, mas cuja existência não pode ser ignorada.
Ainda sobre a objetificação, a pesquisadora Susan Fiske, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, conduziu um estudo que revela que homens com tendências sexistas, ao verem imagens sexualizadas de mulheres, não apresentavam nenhuma atividade na parte do cérebro que responde pelas interações humanas. Nesse estudo, a parte do cérebro que esses homens utilizavam era apenas a destinada ao uso de ferramentas. E, mesmo os homens considerados pouco sexistas – aqueles que, sim, ativavam a área que responde pelas interações humanas – também acessavam principalmente a região específica do uso de ferramentas. O mesmo lugar que se acende ao segurar uma chave de fenda, acendia ao ver um corpo feminino sexualizado.
Por isso, afirmo: o empoderamento da mulher pela sexualização é balela. É fácil acreditar irrefletidamente no discurso que proclama a sexualização como forma de poder. Citar cantoras pop, celebridades do entretenimento e congêneres. Mas a verdade é que, nesse tipo de sexualização, à mulher cabe o papel de agradar. E, para isso, a mulher deve primeiro se adequar a um padrão de beleza ou de conduta. Madonna, por exemplo, que já foi símbolo desse tipo de feminismo, tem sido alvo de críticas cruéis por estar envelhecendo. Refém da imagem que projetou durante anos, a cantora mantém o corpo esculpido por musculação e o rosto inundado por procedimentos cosméticos. Não, ela não pode envelhecer. O marketing feito em torno dela não permite. Ao projetar-se primariamente pela imagem sexualizada, e ao adequar-se aos padrões de beleza reinantes, a cantora causou polêmica entre os conservadores e não revolucionou absolutamente nada: todo o trabalho de emancipação já havia sido feito pelas mulheres que fizeram a revolução sexual das décadas de 60 e 70. Vendida como um produto jovem, sexy e polêmico, hoje se vê que nem a todo-poderosa Madonna consegue fugir ao que Susan Sontag chamou de “duplo padrão de envelhecimento”, e que esse tal poder sexual não passa, na verdade, de uma grande prisão.
Mas voltemos ao ativismo. Não acho que devamos cobrir os nossos corpos e condenar a nudez como protesto, simplesmente. Apenas temos de ter clareza de que um corpo lipoaspirado ou siliconado, moldado ao consumo heteronormativo, nunca será símbolo feminista; será, sim, um símbolo da opressão patriarcal. Na militância, os corpos nus devem ser signos de resistência, não de adequação. Por isso, projetos de aceitação do corpo materno, que mostrem a flacidez, as estrias, as celulites, são tão importantes para que mulheres não se cobrem e se martirizem pela falta da silhueta perfeita.
Finalizo esta coluna com um recente exemplo de nudez feminina combativa. Há pouco tempo, a cantora, pianista e compositora Amanda Palmer teve um show resenhado no jornal britânico Daily Mail. O texto concentrava-se apenas em um aspecto da sua apresentação: o fato de que, em certo momento, a camisa da cantora abriu-se e um de seus seios ficou à mostra. Irritada com a demonstração de sexismo, Amanda Palmer criou a brilhante performance abaixo:
Sim, Amanda Palmer é também um corpo. Um corpo não moldado ao consumo público. Que não está lá para servir a ninguém além dela mesma. E, sim, ela o usa como forma de protesto e, no processo, ela se desobjetifica. Enquanto o Daily Mail tentou reduzi-la a apenas um mamilo, ela usou seu talento artístico para mostrar que o seu corpo era apenas… um corpo. Afinal, há alguém que não o tenha?
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Ilustração: Bruno O.