memória
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Assim marcha a família
Livro de 1965 mostrava para a família o submundo carioca pós-golpe. Por Pedro “Pepa” Silva
É 31 de março de 1965. Em São Paulo, numa quarta-feira pela manhã, você abre o jornal e lê na primeira página: “Comemorações marcam o primeiro ano da revolução.” Com pouca disposição, lê na diagonal as páginas. Fica sabendo que Castelo Branco deu uma esticadinha até Belo Horizonte – quase um ano de mandato!
Você precisa trabalhar e ruma para o Anhangabaú (não o Vale, pois não existe ainda), de ônibus, claro (que o metrô ainda é uma promessa do novo prefeito, o brigadeiro Faria Lima). Na hora do almoço, aproveita para correr à Livraria Jaraguá e acaba por comprar um livro. Não devia, mas…
Acaba o expediente e você pode ir ao Cine Paissandu, aquela sala com mais de 2 mil lugares. Em cartaz às 19h15: Marnie, confissões de uma ladra, de Hitchcock. Você pensa: pode ser melhor do que a novela da Rosamaria Murtinho no canal 9 e de título irônico: Ainda resta uma esperança. Mesmo?
Se bem que quem gosta mais de novelas é sua vizinha. Ou melhor: televizinha. Sem TV em casa, ela acompanha as novelas com sua mãe. Chega sempre quando está acabando o Repórter Esso. Às 21h30 elas começam com a choradeira diante da máquina de fazer doidos: é O direito de nascer, na Tupi. Depois, elas costumam ver um programa musical na Record, “a emissora nota A”, diz a vinheta. Ou dar umas risadas com o humorístico Viva o vovô Deville, na Excelsior (que você assiste depois que soube que os scripts são do Stanislaw Ponte Preta). Mas hoje você não vai ver nada disso na TV porque lembrou que comprou um livro!
Editores e jornalistas num retrato do Brasil
Assim marcha a família: Onze dramáticos flagrantes da chamada sociedade cristã e democrática no ano do IV centenário da cidade do Rio de Janeiro. Organização: José Louzeiro. Prefácio: Carlos Heitor Cony. A capa de Eugenio Hirsch salienta o aspecto de denúncia do título e contrasta um carro com uma mulher e uma criança nua em primeiro plano.
Volume da Coleção Retratos do Brasil, série lançada pelo editor Ênio Silveira na Civilização Brasileira, uma editora de grande importância nos anos da ditadura.
Quando lançou a série, antes do Golpe, Ênio pretendia que os títulos se voltassem à análise do presente brasileiro. Era uma novidade e também uma clara oposição aos estudos preocupados com a formação do Brasil e que ganhavam destaque desde as décadas de 1930/40. Dizia-se que Ênio queria algo “sem muitas teias de aranha” – uma pena que meu exemplar esteja cheio delas.
Hoje, algo ingênuos e até conservadores, esses onze dramáticos flagrantes devem ser entendidos dentro do quadro de opções que havia na época. Na TV, o telejornalismo não era área das mais relevantes. Os telejornais ainda levavam o nome de seus patrocinadores – e não havia ainda o Jornal Nacional. Claro, havia o “show de notícias” do Jornal de Vanguarda, um marco do telejornalismo nacional – mas que também logo sofreria os efeitos do autoritarismo militar. Nas bancas, não havia a revista Realidade. Nem a Veja. Você podia ouvir um pouco de notícias pelo rádio. Se deliciar com as fotos da revista O Cruzeiro, ou com as imagens coloridas da Manchete. O que, é evidente, é pouco espaço para uma análise detida dos acontecimentos que se deram em 1964 no país em seu sentido cultural, cotidiano.
O espaço do livro ainda parecia adequado à tarefa – e Ênio e a Civilização Brasileira desempenharam papel importante na produção editorial do período. Para se ter uma ideia, em 1962, o editor e militante do PCB lançou a coleção Cadernos do Povo Brasileiro, com títulos como O que são as lutas camponesas? e o impressionante-quase-profético Quem dará o golpe no Brasil? Essa coleção era resultado da relação do editor com os movimentos sociais, os CPCs (Centros Populares de Cultura da UNE) e o Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Por aí podemos depreender seu engajamento diante da realidade nacional.
Uma denúncia conservadora
O organizador José Louzeiro apresenta cada um dos onze “dramáticos retratos” dirigindo-se a um leitor bem marcado: a senhora que compareceu à Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Vem daí o título. É como se perguntasse a todo momento: “Que família é essa que foi às ruas?”.
É, na verdade, uma família que exclui tudo aquilo que higienicamente não se identifica com ela: as prostitutas, os homossexuais, os mendigos. Burguesia ou classe média, essa família desconhece as condições de vida em cortiços, desconhece a violência e o descaso do Estado para com os desvalidos, os menores infratores, os que vivem à margem.
Lembre-se: a nossa contracultura ainda não existia. O desbunde e as lutas das minorias só ganhariam amplitude no bojo da abertura política, quase dez anos depois. Este Rio, esta São Paulo, este Brasil de 1965 é pré-Tropicália, pré-Dzi Croquettes e ainda anda embriagado diante do sentido das palavras: comunismo, golpe, revolução, intervenção militar…
O livro, portanto, não deixa de ser pretensioso ao querer apresentar um submundo (carioca) para a família (brasileira). “Vejam a sociedade que se mantém diante da tal Revolução! Vejam a hipocrisia dessa família que marcha com Deus e tem no coração a indiferença!”, parece gritar o organizador. Ao mesmo tempo, a pretensão vem carregada de um moralismo que não deixa de ser reflexo de… uma ideia de família!
Os textos de Sylvan Paezzo que disponibilizo aqui vão nessa seara: o homossexual, por exemplo, é uma figura não só ligada à marginalidade, mas um retrato da degeneração daquela sociedade. Doente? Sim! Mas a homossexualidade aqui é uma doença da sociedade… (Curioso que o autor por trás da reportagem que trazia pra dentro de casa as figuras da perdição seria o autor de uma biografia de Madame Satã anos depois!)
Lidas hoje, as reportagens reunidas no livro, e realizadas ainda em 1964 (o livro foi finalizado em dezembro daquele ano), dão a noção de a quantas iam nosso jornalismo e nossas cabeças pensantes, nossa inteligência interessada na realidade. Testemunho de uma época de turbulência, em que não era tão fácil ter certezas ou dogmas – daqueles que a oposição de esquerda religiosamente assumiria anos depois… Mas isso já é outra história!
Post-scriptum (ou a lição do abismo)
Embora pensado ao longo daquele ano, o volume da Civilização Brasileira organizado por José Louzeiro não foi o primeiro dedicado ao significado dos eventos de março e abril de 1964. Em junho, era publicado Os idos de março e a queda em abril, organizado por Alberto Dines, então editor-chefe do Jornal do Brasil. Lançado pela José Álvaro Editor, o livro tinha prefácio de Otto Lara Resende (cujo título acena para as interpretações dos protestos de 2013: “A revolução numa poltrona”) e textos de diversos jornalistas que se notabilizaram pela posterior oposição à ditadura, como Antônio Callado. A redescoberta do livro no contexto dos 50 anos do Golpe reacendeu a reflexão sobre a posição dos jornalistas naquele contexto e alimentou a cultura do fast-food histórico essencialmente dualista (glorificação x demonização; apoio x oposição etc.). Muito bem: diferentemente do que dizia um livro de 1979, a imprensa disse sim ao golpe. E esse fato tem desencadeado ressignificação de trajetórias e críticas anacrônicas ou simplistas. Diante das críticas que recebeu, Alberto Dines escreveu dia desses: “Na ocasião [1964], nossos radares espirituais estavam embaçados, incapazes de identificar a catástrofe. Faltou à maioria aquele sentimento trágico da vida de que falava Unamuno – a percepção do abismo, a aproximação veloz do desenlace e da ruína”. A nós, deste 2014, restam as lições do abismo.
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Ilustração: Gunther Ishiyama.