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Pra mandar um salve
Algumas notas sobre gênero, família e mulheres na prisão. Por Natália Bouças do Lago
No dia que recebi o convite para propor um texto para a Geni, topei na hora. Não apenas pelo trabalho bacana da revista, mas também pelos temas propostos para o texto: uma reflexão sobre família que tivesse um enfoque de gênero e pudesse sugerir questões relacionadas às mulheres que estão (ou estiveram) presas.
Como acabei de concluir uma pesquisa de mestrado sobre mulheres na prisão que teve como proposta o olhar para essas mulheres a partir do gênero e das elaborações que elas fazem sobre família, achei que a tarefa seria simples. Mas não. As possibilidades são muitas. Fácil é perder o rumo e não conseguir propor conversa alguma sobre mulheres, gênero, família. Desafio posto, resolvi percorrer um caminho que garante, em tese, alguma segurança: falar um pouco sobre a pesquisa que realizei com as mulheres e apresentar as formas pelas quais elas traziam à tona discussões que eram atravessadas pelo gênero – e pelas expectativas de papéis a serem cumpridos pelas mulheres – para contar sobre as suas vidas na prisão.
Elas queriam falar sobre outras coisas
Ao longo da pesquisa de mestrado que desenvolvi, busquei discutir as elaborações, produzidas por mulheres em privação de liberdade, que fazem parte da negociação de posições e projetos que conectam os mundos de dentro e de fora da prisão. O gênero é fator central para compreender o posicionamento dessas mulheres, na medida em que estabelece algumas expectativas e desempenhos específicos. Aqui, é importante dizer que não estou tomando “gênero” como sinônimo de “mulheres”, mas sim como uma elaboração que diz respeito a noções de feminilidade e masculinidade que se produzem nas relações e implicam assimetrias de poder.
O gênero se combina à situação social das mulheres com quem convivi ao longo da pesquisa, marcada pela pobreza. As articulações entre o gênero e a classe foram apresentadas ao longo da dissertação a partir dos discursos que as mulheres com quem conversei produziram sobre família e sobre seus relacionamentos amorosos. A percepção apresentada na pesquisa é a de que essas formulações ajudam a situá-las no mundo da prisão e a vincular a experiência do cárcere à vida na rua, tanto em relação ao período anterior à privação de liberdade como em relação às suas perspectivas de futuro.
Quando dei início à pesquisa, meu interesse era conversar com as mulheres sobre tráfico de drogas, para tentar entender os processos que permeavam a participação delas nessa que é, hoje, a acusação responsável pela maior parte dos casos de aprisionamento de mulheres. No entanto, se eu tentava conversar sobre as questões que as levaram à prisão, elas queriam falar comigo sobre outras coisas: o dia a dia no cárcere, as fofocas e as brigas, as festas, os familiares. As questões que mobilizavam as mulheres com quem eu conversava na prisão eram distintas daquelas que me levaram à pesquisa. Segui, então, as pistas que essas mulheres deixavam para tentar entender os porquês de acionarem concepções de família para conversar sobre a vida na prisão.
As mulheres com quem convivi atribuem valor às suas famílias e constroem noções a esse respeito que dialogam (seja como argumento, seja como contra-argumento) com outras concepções de família presentes no cárcere – que saem da boca de colegas encarceradas, de agentes prisionais, do sistema de justiça, de organizações não governamentais que atuam ali. “Família”, para essas mulheres, ajuda a elaborar significados para as experiências vivenciadas na prisão e para as suas relações. Para usar a formulação de Cinthya Sarti, antropóloga brasileira, a família pode ser entendida como uma linguagem que ajuda a traduzir o mundo social.
É importante deixar claro que “família”, nesse caso, serve para falar de relações que podem ou não ter a ver com vínculos sanguíneos – podemos dizer que a família é percebida neste texto (e entendida por essas mulheres) em um sentido alargado.
Porosidades
Para entrar um pouco no contexto da prisão, vale dizer que a prisão tem porosidades que conectam os mundos de dentro e de fora dos muros. Em outras palavras, as mulheres não estão completamente apartadas do mundo quando presas. A privação de liberdade altera profundamente as formas pelas quais elas dão continuidade às relações estabelecidas antes do encarceramento, mas o cárcere não as retira completamente dessas mesmas relações e promove relações outras, anteriormente inexistentes.
Quando penso nessas relações outras que são constituídas a partir da prisão, remeto à ideia de que o cotidiano na prisão requer a convivência e a negociação com uma série de regras, explícitas, da própria prisão e daquilo que é pactuado entre as mulheres. A partir das histórias de algumas dessas mulheres e das observações realizadas ao longo da pesquisa, pude perceber certa dinâmica na cadeia. Estar na prisão requer construir posicionamentos frente a essas dinâmicas, que são produzidas pela convivência com outras mulheres presas, com as igrejas e organizações não governamentais ali presentes, com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que estabelece procederes e regulações para a vida dentro do cárcere, e com o Estado – que ganha corpo a partir da própria instituição prisional e também a partir do sistema de justiça. Dessa forma, percebe-se que, se a prisão tem porosidades, ela também não é um campo de porosidade infinita: o Estado está presente ali, mantendo essas mulheres encarceradas, regrando suas vidas e o trânsito entre os muros do cárcere.
As presas ainda constroem distinções entre si diante de muitos fatores: a localização da cela dentro da prisão, o envolvimento ou não com o PCC, a ocupação de determinados postos de trabalho (há algumas possibilidades de trabalho na prisão, ainda que precarizadas e não disponíveis a todas as interessadas), as possibilidades de consumo que o trabalho ou a ajuda da família garantem dentro da prisão. A existência dessas distinções estabelece clivagens entre as mulheres e requer, a todo o tempo, que elas se movimentem. O gênero é, aqui, um marcador central para compreender o posicionamento e a movimentação dessas mulheres, na medida em que estabelece expectativas e desempenhos específicos, que muitas vezes são aludidos nas suas falas; elas dialogam com papéis de gênero já descritos em pesquisas realizadas com famílias de classes populares que remetem as mulheres a lugares como os de mãe, esposa e trabalhadora/batalhadora.
Famílias dignas e aceitáveis
As expectativas constituídas diante do gênero, que também apresentam formulações sobre família, podem ser percebidas no conteúdo das conversas com uma das mulheres com quem convivi, Ana (nome fictício). Ela chegou grávida à prisão e teve a filha retirada dos seus cuidados poucos dias após o parto. O juiz responsável pelo caso da menina a encaminhou para a adoção, a despeito da vontade de Ana de que a criança ficasse sob os cuidados dos seus familiares enquanto ela permanecesse presa. Ao negar a guarda da filha de Ana para os avós, o juiz questiona a capacidade da mãe de Ana de cuidar da neta, dizendo que ela não soube criar os próprios filhos, tendo em vista o envolvimento de Ana (e de alguns dos seus irmãos) com atividades consideradas ilícitas. Na fala do juiz, percebe-se a alusão a uma ideia de que uma família dita “desestruturada” não seria capaz de cuidar de uma criança.
Nas cartas que Ana escrevia para tentar documentar a sua defesa e a vontade de retomar a guarda da filha, ela sublinhava que tinha família e que sua família era digna, como que para afirmar que a prisão não a impedia de possuir ligações e laços com um determinado grupo de pessoas. Se o termo família representa, na fala do juiz, uma construção ideológica que estabelece parâmetros para definir o que essa família deveria ser, essa mesma construção está presente nos momentos em que Ana faz referência à família que possui, ainda que os dois usos e concepções expressem visões de mundo possivelmente distintas. Quando Ana diz que tem família, e que essa família é digna, ela disputa a concepção do que seria uma família aceitável, capaz de cuidar de uma criança. A alusão de Ana à “família” a retira da chave da marginalização imposta pela prisão e imposta pela perda da filha, concede matizes à dimensão de “criminosa” que a marca assim que chega à prisão – dimensão esta que não necessariamente deixa de existir após a sua saída do cárcere.
Ana e outras mulheres com quem conversei, cada uma à sua maneira, constituem noções de família que se contrapõem aos olhares do sistema de justiça, mas não deixam de dialogar com os papéis e expectativas destinados às mulheres. Produzem concepções acerca de si e de seus relacionamentos que dão corpo às suas experiências de prisão e indicam aspirações para a vida fora dali.
Trago, por fim, a fala de uma das mulheres que conheci e que, certa vez, pediu que eu contatasse um programa de rádio destinado à população prisional (chamado Momento presidiário) e mandasse um salve a elas (neste caso, um alô, um cumprimento) porque, em suas palavras, “só mandam salve pra homem”. Trago essa fala para dar alguma substância ao desafio mais geral de quando pensamos nas mulheres presas: falar sobre as mulheres em contextos em que, na maior parte das vezes, os homens vêm sendo o centro da questão. Nesse sentido, ressalto a proposta aqui levantada de tentar olhar para as mulheres a partir do contexto do encarceramento e, ao mesmo tempo, perceber algumas das estratégias de atuação empregadas por elas na tentativa de entender as formas pelas quais, no contexto da prisão, elas se movimentam.
Natália Bouças do Lago é antropóloga e fez em seu mestrado uma pesquisa sobre mulheres na prisão. Contato: nalago@gmail.com.
Ilustração: Bárbara Scarambone.
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