Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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O patriarcalismo e seus outros

Dando nome aos bois, às vacas e a toda a arca. Por Lia Urbini

 

Realidades

 

Quando comecei a estudar ciências sociais na universidade passei a sentir muita falta de imagens, palavras ambíguas, humor, cinema… deste quinhão de fantasia às vezes essencial para descrever uma determinada situação ou fenômeno com a força que lhe é necessária. E para fazer uma introdução ao termo “patriarcalismo”, me pareceu importante utilizar junto ao quadro de referências acadêmicas algumas notas sobre uma das melhores descrições “fantásticas” que me deparei: o filme Pai Patrão.

 

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Começo portanto a partir de breves comentários de duas de suas cenas e depois passo para uma situada geral sobre a utilização do termo, visualizado em suas relações com mídia, ficção, família e capitalismo hoje.

 

Pai patrão

 

Pai patrão é um filme italiano dirigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani em 1977. É inspirado em um romance autobiográfico da mesma época, escrito por Gavino Ledda, pastor de ovelhas que até os 18 anos foi analfabeto e que depois se tornou linguista.  Em termos bem gerais, trata-se do crescimento do pastor marcado profundamente pelas violências ocorridas no ambiente familiar.

 

O filme começa com o momento em que Gavino é retirado pelo pai da escola, alguns meses depois de começar a frequentá-la, com o argumento de que o garoto fazia falta no trabalho no campo, do qual sua família sobrevivia. O pai menciona a condição desigual que enfrentam os pastores e camponeses desde que não podem mais produzir a maior parte do que necessitam, submetidos à lógica dos grandes produtores industriais, e conclui: “Ele é meu, não posso abrir mão dele. Estou tranquilo. É a lei que não está tranquila. Quer tornar obrigatória a escola quando a pobreza, essa é que é obrigatória”.

 

O pai o retira da sala de aula, e as crianças caçoam do colega. O pai volta, ameaçando a todos com um galho, um dos seus instrumentos de trabalho: “E ai de quem rir do Gavino. Hoje foi Gavino, amanhã serão vocês”. Depois da ameaça, alguns alunos pensam:

 

“- Mentira, comigo não acontecerá. Mamãe jurou. Somos ricos, temos duas vacas.

 

– Deus, faça papai morrer, e eu lhe obedecerei para sempre. Basta um coice na barriga. Na testa, é melhor. Assim morre sem perceber.

 

– Antes de mim, será meu irmão. É nove meses mais velho. Ele é mais baixo, mas é o mais velho. Será ele.

 

– Ao chegar em casa, porei uma cadeira junto à janela, subirei e me atirarei, quando todos estiverem à mesa. Assim, irão ver-me, e mamãe tentará deter-me.”

 

A angústia é generalizada frente ao poder do pai. Mas não só. Trata-se também da angústia frente ao poder da pobreza.  A família hierárquica, os “pais patrões”, pode se alimentar e se fortalecer em determinados contextos nos quais essa estrutura se combina com uma forma de regulação econômica e social que expropria e depois redistribui desigualmente saberes e capacidades entre os membros de uma dada sociedade, valendo-se da própria escola para garantir um mínimo garantido dessa redistribuição. Essa é a realidade compartilhada por muitas das famílias retratadas no filme.

 

Mas isso não é uma regra. Não temos uma associação única entre capitalismo e patriarcalismo. Essa mesma regulação econômica e social (no caso, o capitalismo industrial) possibilitou também, como muito bem sintetizado por Maria Rita Kehl em artigo chamado “Em defesa da família tentacular”, movimento exatamente oposto: uma distribuição mais igualitária do poder, inicialmente entre homens e mulheres, e posteriormente também entre pais e filhos, ainda que muitas vezes pela necessidade primordialmente exterior do próprio sistema de viabilizar uma exploração mais igualitária da força de trabalho, independentemente de gênero ou idade. Em alguns lugares, principalmente nas cidades maiores, passaram a ser mais frequentes uniões menos duradouras, o fim da sacralidade absoluta dos matrimônios, mulheres como chefes de família. Não apenas famílias centradas em um núcleo autoritário, mas também famílias descentralizadas, “tentaculares”.

 

A questão que mais me chamou a atenção, nesse sentido, foi o fato de o filme mostrar alguns desdobramentos do abuso e da centralidade paterna que ainda encontrava o seu lugar naquela época em que outras tantas coisas aconteciam. Em paralelo, em sentidos contrários ou cruzados. Em 1975, ano em que o livro era publicado, a Microsoft era criada, assim como a República Socialista do Vietnã. Cabo Verde, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Comores, Timor-Leste e Papua-Nova Guiné conquistavam suas independências, enquanto era restaurada a monarquia na Espanha. É o ano da primeira edição da Playboy no Brasil e do assassinato do escritor e diretor de cinema italiano (gay e comunista) Pasolini. Indícios da necessidade de entender a história em seus movimentos contraditórios e, de certa maneira, conectados.

 

Mas conectados a partir do quê? Conectados por quem? Voltando ao filme, é Gavino quem escreve sua história, e existe toda uma importância no fato do retorno aos estudos como forma de reconexão com Outros, com o mundo para além do universo que a família lhe apresenta: isso lhe possibilita pensar seu futuro e sua história para além das perspectivas dadas.  Mas Gavino corrige essa possível positivação da escola, não atribuindo somente a ela os créditos do seu aprendizado: trata-se antes de “uma história que não é só a minha. Alguns pastores dizem que eles fizeram o livro com sua vida. Minha escolha teve e tem esse sentido. Por isso acredito na profissão de escritor. Ainda que com frequência eu sinta vontade de fugir desta cidade. (…) No continente eu teria outras gratificações. Usaria meu novo poder como um privilégio, assim como meu pai dirigiu o seu. Seria minha última vitória. Talvez só um cálculo egoísta me segure aqui, o medo de que longe de minha caverna, de minha gente, eu volte a emudecer, como quando estava no curral”.

 

Se pensarmos na continuidade do elitismo do ensino escolarizado e do filão de mercado que ele constituiu quase 40 anos depois do livro, podemos supor que o que segurava Gavino fora de uma típica carreira acadêmica pudesse ser a suspeita de poder se descobrir outra vez em situação de reprodução de hierarquias e emudecimentos, em uma esfera que, contraditoriamente, lhe permitira até então justo o contrário.

 

Passo, a seguir, à minha proposta de trazer algo do debate acadêmico sobre patriarcalismo tentando lidar contraditoriamente com a expropriação e posterior redistribuição desigual desse saber, com alguma inspiração no Gavino. Algo como o lema estudantil “Não deixe a universidade atrapalhar os seus estudos”.

 

Dando nome aos bois, às vacas e a toda a arca: patriarcalismo e seus outros

 

De forma bastante resumida, patriarcado era um termo utilizado na Antiguidade para se referir à autoridade suprema masculina exercida sobre o que era considerado propriedade do homem (ou, melhor dizendo, de alguns deles): sua terra, sua família e seus escravos. Patriarcalismo, por derivação, seria o patriarcado operando como sistema, como relação predominante numa determinada sociedade. Como ainda hoje muito da assimetria nas relações de poder entre homens e mulheres se mantém, o conceito continua a ser utilizado para evidenciar esse caráter duradouro da desigualdade. Nesse sentido, refere-se a um padrão, uma estrutura social que seria identificada em momentos históricos diversos.

 

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Quando damos um nome a um determinado fenômeno e descrevemos seu mecanismo, delimitamos uma fronteira a partir da qual esse fenômeno também pode ser compreendido: a partir do que ele não é. No nosso exemplo, ao definir certas relações como centradas na autoridade masculina, visualizamos o que essa relação não é: descentralizada ou centralizada numa autoridade não masculina. Formas alternativas à imediatamente experimentada aparecem então como possibilidades pensáveis. Não por geração espontânea, diria Karl Marx, mas porque nossas relações sociais nos colocam em condições de pensar o que pensamos. O não existente pensado de alguma forma depende do existente vivido:

 

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentarem-se nessa linguagem emprestada. […]” (Karl Marx, “O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte”. Escrito entre 1851 e 1852. Disponível em marxists.org.)

 

Essas considerações sobre história, tradição e revolução são importantes. Elas combinam algo de estrutura com algo de agência, algo de ações individuais com algo de ações coletivas. O próprio Marx, por exemplo, não poderia escapar da “opressão das gerações mortas”, como ele diz.  Quando escrevia “Proletários de todos os países, uni-vos”, seria improvável que ele encontrasse, entre os grupos de trabalhadorxs com os quais se relacionava, canções como “As gay, as bi, as trava e as sapatão, tá todo mundo unidx pra fazer revolução”. Nem tampouco entre xs demais companheirxs, intelectuais das universidades e do mundo editorial. Não à toa, um ótimo parágrafo como esse começa com “os homens”. No entanto, não é possível cobrar dele (ou de seus tradutores, ou de nós mesmxs) a utilização de uma linguagem que não seja também emprestada. E mesmo se fosse possível, seria desejável? Também não é das gerações mortas que emprestamos referências de combate, além das de opressão? Dialogamos com o nosso tempo, e mesmo para transformá-lo precisamos de instrumentos comuns, herdados. Negar isso é negar o caráter social e histórico do nosso agir.

 

E o tempo não para

 

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Não para, não, não para…

 

Essa volta toda foi apenas para circunscrever historicamente o debate sobre as nomenclaturas, entendendo um pouco da questão em torno do uso do conceito de patriarcado. Para frisar a importância de uma caracterização, de uma denominação, e ao mesmo tempo a necessidade de que essa nomenclatura não nos aprisione numa compreensão congelada da realidade. Parafraseando, mas invertendo a Bíblia: no princípio era o verbo, a palavra, mas ela se fez carne e habitou entre nós. Conturbadamente. E, no reino humano, escolhemos ideias para significar o mundo, mas de repente elas não correspondem mais aos fatos.  Ao mesmo tempo, tanto podemos ver novas ideias emprestando roupagens antigas para se apresentar ao mundo, como ideias velhas se travestindo de novas. Assim, utilizar ou não certos conceitos implica pensar na história deles e se posicionar.

 

Há críticas interessantes de feministas em relação às vantagens e desvantagens da adoção do conceito. Se por um lado a persistência do uso revela a continuidade do tratamento desigual entre gêneros, por outro lado apaga a especificidade da supremacia masculina em cada uma das suas variantes. A ideia de gêneros embutiria a possibilidade de se pensar o masculino e o feminino a partir de certa neutralidade de princípio, enquanto que “patriarcalismo”, que em alguns contextos poderia servir como conceito correlacionado, já marca o debate a partir da supremacia masculina. O pessoal do blogue Ensaios de gênero debate com mais detalhes essa questão aqui, o que acredito ser suficiente para uma boa introdução a respeito dos limites e possibilidades do emprego do conceito.

 

Encerro portanto com o convite para que os que não conhecem o filme, que assistam (achei no tórrenti), e, para todxs, que indiquem outras ficções antissistêmicas boas para entender a persistência do patriarcalismo e suas brechas.

 

Dedico esse texto ao meu avô e às minhas famílias. Agradeço especialmente ao Marcos, por me apresentar ao Pai Patrão, e à Aline, por propor imagens disso em conjunto.

 

Leituras indicadas/utilizadas:

 

 

Maria Rita Kehl. “Em defesa da família tentacular”. No site da autora.

Zuleika Alembert. Feminismo: o ponto de vista marxista. São Paulo: Nobel, 1985 (1ª ed.).

Heleieth Safiotti. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo, Expressão Popular, 2013. (1ª edição: 1976).

____________. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Ed. EFPA, 2004.

Blog – Ensaios de gênero: “O conceito de gênero por Heleieth Saffioti: dos limites da categoria gênero, aqui.

Texto sobre primeiro debate público da Geni, em torno das relações entre monopólio da mídia e o monopólio do corpo.

 

 

Leia outros textos de Lia Urbini e da seção Instrumental.

Ilustração: Aline Sodré.

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