coluna
À Flor da Pele, Amanda Palha, Bianca Muto, coluna, identidade, número 12, transgeneridade, travesti
À FLOR DA PELE | À merda
Artigo 5º, parágrafo 2: não sou obrigada. Por Amanda Palha
Escrevendo em crise, pois: tá foda. Tenho plena consciência de que tenho cá meus privilégios – sou branca, letrada e tenho uma família disposta a tentar me apoiar emocionalmente –, mas, neste exato momento, não estou sabendo lidar.
Acordei ontem às quatro e meia da manhã no sofá da casa de uma pessoa amiga e a sensação era a de que eu tinha cheirado o domingo.
Porque ele foi incrível, a princípio. Na verdade, foi anormalmente incrível. Revi um casal de amigos de longa data, fui a um evento com meu irmão, com quem tive oportunidade de conviver socialmente pela primeira vez depois da transição, tive uma noite agradável com um monte de gente fantástica e, também pela primeira vez, fiquei com alguém com quem já não ficava antes da transição.
Ainda assim, como se o domingo fosse padê, eram quatro e meia da madrugada e eu estava encolhida no sofá, em posição fetal, alerta e numa bad como havia muito não tinha: me sentindo péssima o suficiente pra nem conseguir chorar e com as piores imagens martelando na cabeça.
Me sentindo feia.
Escrota.
Suja.
Baixa.
E isso é ainda mais escroto porque, usualmente, foda-se, sabe? Não é como se a gente não fosse martelada com esses adjetivos o tempo todo: a gente nunca é bonita, ou agradável, ou gente. A gente é sempre o símbolo do que é sujo e abjeto: minha identidade é mais dita como xingamento do que como constatação. E, geralmente, foda-se, porque tem que ser foda-se pra conseguirmos sair de casa.
Mas ainda não estou tão bem resolvida assim. Ontem eu ruí.
E eu tinha mil coisas planejadas para escrever no segundo texto para esta coluna, mas decidi compartilhar essa bad porque eu quero deixar muito nítido (principalmente pra mim mesma) que
não posso admitir que tenham esse poder sobre mim!
Porque o mais escroto, talvez, seja:
como se não bastasse estar me sentindo horrível, já que a gente é tão abjeta que até o parâmetro pra definir se somos bonitas é o quanto a gente não parece ser travesti/transgênero;
me sentindo escrota, porque espera-se sempre que compensemos nossa existência sendo agradáveis, divertidas, expansivas, espirituosas e quaisquer outras coisas que ninguém tem a obrigação de ser (nem tem saco pra ser o tempo todo);
me sentindo suja, porque somos vistas como tão abjetas que o próprio nome que define nossa identidade é usado como ofensa, e usualmente só somos lembradas quando é pra fazer troça, ridicularizar ou inflar estatísticas;
e me sentindo em pânico por todos os outros problemas pessoais e financeiros, somados ao medo de como as coisas serão após o fim do aviso-prévio que estou cumprindo…
Como se todo esse turbilhão não fosse o suficiente, eu ainda fiquei puta comigo mesma por me sentir assim! Como se já não fosse treta o suficiente, eu ainda fiquei me sentindo culpada.
E não posso me permitir ou admitir isso. Não podemos nos permitir. Isso não é um conselho, não estou nessa posição: é um pedido de socorro. Não quero deixar de ficar puta, mas quero ficar puta com o alvo certo!
À merda com a sua meritocracia que mascara o fato de que não, nós não acessamos a sociedade da mesma forma.
À merda com o seu papinho individualista de autoajuda que tenta me convencer de que, se não estou bem, só pode ser porque não estou tentando o suficiente ou querendo de fato.
À merda com os seus padrões estéticos violentos que fazem com que a gente gaste todas as nossas energias tentando cobrir o buraco do auto-ódio que vocês mesmos criam e alimentam, tentando corresponder ao que é vendido como a única forma de sermos tratadas com uma lasquinha de dignidade.
Já deu.
Eu sou travesti, sou visivelmente travesti e tenho muito orgulho disso. Demorei pra conseguir dizer isso com sinceridade e não vou permitir que me tirem isso agora.
Eu não sou “parece-que-nem-é”, e provavelmente nunca vou ser. Não tenho dinheiro pra cirurgias, não tenho alongamento, sou toda travada, ainda não tenho seios, não tenho bunda, não tenho cara de Barbie, não quero alisar meu cabelo, não sei ser sensual, não sou a rainha do sexo, não sou sempre agradável, adequada ou pertinente, não existo pra só intervir nas conversas pra fazer piada, não sou expansiva o tempo todo, nem sempre sou espontânea, não sou monogâmica, não sou monossexual, não me preocupo em reproduzir uma moral falida, cago um balde pros seus “bons costumes” e, querem saber?
Se isso for um problema, é um problema de vocês.
Lidem com isso, porque pra mim já deu.
Leia outros textos de Amanda Palha e da coluna À Flor da Pele.
Ilustração: Bianca Muto.