Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

perfil

, , , , , , , , , ,

Vingança lésbica

A história do grupo Lesbian Avengers, que botou fogo nos Estados Unidos no começo dos anos 1990. Por Marcos Visnadi

 

eat fire lesbian avengers cecila silveira

 

Dedico este texto às minhas amigas barulhentas, vingativas, maravilhosas
e ao movimento LGBT brasileiro

 

 

“Desarmem suas tendas, temos muito a descobrir
Não há um lugar no mundo onde não podemos ir”

Vange Leonel, “Esse mundo”

 

 

Nos Estados Unidos, depois de mais de duas décadas de rebeliões que abalaram o país, vieram os anos 80. As estratégias de ataque do movimento negro foram desarmadas pelo governo, levando, por exemplo, o Partido Pantera Negra à extinção. As políticas conservadoras do presidente Ronald Reagan (1981-1989) sepultaram de vez os movimentos anticapitalistas surgidos nos anos 60. E, sendo o país mais afetado pela aids, os Estados Unidos também viram sua pujante comunidade gay adoecer e se desarticular. Além disso, houve uma grande reação social contra as conquistas feministas dos anos 70, como mostra a jornalista Susan Faludi no livro Backlash: The Undeclared War Against American Women (em tradução livre, Retrocesso: A guerra não declarada contra as mulheres estadunidenses).

 

Os movimentos sociais estadunidenses, que inspiraram lutas no mundo inteiro, demorariam muito para se recuperar desses baques, e até hoje ainda não reuniram uma força parecida com a que tinham antes dos anos 80. Mas inúmeras tentativas têm sido feitas, e elas não começaram com o Occupy Wall Street.

 

Uma das retomadas mais impressionantes dos movimentos pelos direitos civis aconteceu no começo da década de 90, quando um grupo de lésbicas nova-iorquinas resolveu incendiar o cenário político nacional.

 

“Se você quer vingança, faça uma reunião”

 

Em 1992, a escritora cubano-estadunidense Ana María Simo estava emputecida.

 

Nova Iorque era uma cidade imensa, fervilhante, cheia de gente de todas as partes e de todos as cores. Mas também era uma cidade muito violenta, cheia de intolerância e de crimes de ódio. Nesse contexto, um grupo de professorxs resolveu ajudar as escolas a ensinar crianças em idade pré-escolar a respeitar as diferenças. Assim surgiu o Currículo Arco-íris, um documento de 443 páginas que continha jogos, referências bibliográficas e planos didáticos que poderiam ser usados em sala de aula para discutir a diversidade cultural.

 

 

Entre receitas gregas, danças mexicanas, canções irlandesas e brincadeiras japonesas, o Currículo Arco-íris tinha algumas poucas linhas, muito discretas, que diziam que lésbicas e gays eram pessoas como quaisquer outras – e que, como quaisquer pessoas, mereciam respeito. Foi o bastante para despertar a ira de muitos adultos. Pais, clérigos e professores atacaram a iniciativa dizendo que aquilo era propaganda de opção sexual, incentivo à homossexualidade, o início de uma ditadura gayzista. Bom, não exatamente com essas palavras, mas o que diziam era algo incrivelmente parecido com as baboseiras que a gente ouve hoje no Brasil. Foi então que Ana María Simo se emputeceu de vez.

 

 

Ela, que havia lutado no Maio de 68 francês e integrado diversos grupos feministas e LGBTs, chamou outras ativistas lésbicas e propôs a criação de “um  grupo totalmente focado em ativismo de rua de alto impacto, não em ficar conversando”.

 

“Nós estamos desperdiçando nossas vidas sendo cuidadosas”

 

A primeira reunião aberta, dizem, foi um desastre. As mulheres presentes queriam lutar pelos direitos dos animais, pela legalização do aborto, contra a aids, mas nada de falar das especificidades das lésbicas. Então uma segunda reunião aconteceu, apenas com as lésbicas que compartilhavam o incômodo de Ana. Durante um jantar, as seis sapatões reunidas sistematizaram um modo de atuar, elencaram prioridades de luta, fizeram um panfleto e criaram um nome que resumia as intenções do grupo: Lesbian Avengers – as Vingadoras Lésbicas.

 

 

Elas decidiram fazer um protesto independentemente do número de pessoas que quisesse protestar. Se ninguém mais aparecesse na primeira manifestação planejada, elas fariam barulho sozinhas! Mas, após panfletagens direcionadas exclusivamente a lésbicas, aproximadamente 70 pessoas compareceram à terceira reunião do grupo. O panfleto entregue era explícito e convincente: “LÉSBICAS! SAPATÕES! MULHERES GAYS! Nós estamos desperdiçando nossas vidas sendo cuidadosas. Imagine como a sua vida poderia ser. Você não está pronta pra fazer acontecer?”.

 

 

A primeira ação das Avengers tinha como inimigos os adultos homofóbicos que queriam tirar qualquer menção a lésbicas e gays do Currículo Arco-íris. Para lutar contra essa gente, elas escolheram bem suas aliadas: as crianças. Na porta de uma pré-escola, cantando músicas e batucando tambores, elas entregaram às alunas e alunos dezenas de balões de gás com uma inscrição simples e direta: “Pergunte sobre a vida das lésbicas”. Nas camisetas que usaram no ato, outra frase honesta e fácil de entender: “Eu fui uma criança lésbica”.

 

lavanda balon lesbian avengers cecilia silveira

 

“Assumindo o poder!”

 

Uma sapatão incomoda muita gente. Um grupo de sapatões incomoda muito mais. Mas as Lesbian Avengers queriam incomodar mais ainda.

 

 

Nada de abaixo-assinados, petições, cartinhas, negociações com homens engravatados. Nada de manifestações silenciosas! O ativismo de rua e de impacto tinha que ter muito batuque, muita gritaria. Tinha que pegar o inimigo de surpresa. Tinha que trollar.

 

 

Assim sendo, elas encheram de bombas de fedor (peido de velha, fica a dica) o escritório do advogado da arquidiocese de Nova York, onde também colaram cartazes que diziam: “Homofobia fede!”.

 

 

Elas se reuniram de madrugada, na véspera do Dia dos Namorados, debaixo da janela da homofóbica diretora de uma associação de professorxs para fazer uma serenata cheia de canções de amor sapatão.

 

 

As Avengers também invadiram a redação de uma revista feminina que estava organizando um evento turístico no Colorado, que havia acabado de aprovar uma lei antigay, e gritaram até que a editora cancelasse o evento. E, quando o prefeito de Denver, capital do Colorado, foi a Nova Iorque promover o turismo de inverno em seu estado, elas o seguiram por toda parte, invadiram o hotel onde ele dava uma palestra e fizeram tanto barulho, mas tanto barulho, que, em toda entrevista, os jornalistas acabavam perguntando ao prefeito: e a lei antigay do seu estado?

 

 

Elas construíram uma estátua de Alice Toklas e a colocaram ao lado da estátua de sua esposa, a grande escritora lésbica Gertrude Stein, próxima à Biblioteca Pública de Nova Iorque. E fizeram um sarau que durou a tarde inteira.

 

statue alicetoklas lesbian avengers cecilia silveira

 

Elas sabotaram a invisibilidade lésbica da Parada do Orgulho LGBT em Washington, capital do país, organizando a primeira Marcha Sapatão. Entrando em contato com quase todos os bares, livrarias e espaços de lésbicas dos Estados Unidos e unindo-se a outras organizações lésbicas que tinham uma visão de mundo semelhante à delas, as Lesbian Avengers botaram 20 mil sapatões para marchar em frente à Casa Branca na noite de 24 de abril de 1993, um dia antes da Parada do Orgulho LGBT oficial. As participantes da marcha voltaram para seus estados, onde organizaram marchas locais, e muitos grupos regionais de Avengers foram criados em todo o país.

 

“O fogo não vai nos consumir”

 

Um dos principais símbolos das Avengers é o ato de comer fogo: enfiar uma tocha acesa dentro da boca sem se queimar e acender, na mesma chama, outra tocha, que é passada a uma companheira, que faz a mesma coisa. E assim por diante.

 

 

O ato simbólico surgiu no protesto em memória a uma lésbica e a um gay assassinadxs no estado do Oregon, dentro de sua casa, depois que um grupo de skinheads jogou coquetéis molotov pela janela. Hattie Mae Cohens e Brian Mock foram queimadxs vivxs.

 

 

Comer fogo se tornou marca registrada das Avengers, assim como um de seus principais gritos de guerra: “O nosso medo não vai nos consumir. O fogo deles não vai nos consumir. Nós tomamos esse fogo e o tornamos nosso”. O ato também é representativo do jeito Lesbian Avenger de fazer política.

 

 

“Se você alguma vez pichou frases antiódio pela cidade, você sabe como é gostoso fazer vandalismo por uma boa causa”, dizem elas no Manual de Bolso para a Revolução Caseira. “Mas a ação direta não vale só pela catarse. Na nossa era pós-moderna, a cobertura da mídia é a mensagem. Ação direta consiste em chamar a atenção, então não seja tímida. A mídia adora oportunidades de fotos, então dê para ela algo para fotografar – sapatões vestidas de noiva, cartazes e faixas com frases ofensivas, serenatas sáficas, altares pegando fogo.”

 

 

Embora as Avengers não pedissem permissão à polícia para protestar e se preocupassem em sempre ter dinheiro em caixa para pagar fianças, o principal objetivo delas, ao menos nos primeiros anos, não era o confronto corporal, e sim o apelo visual, botar as lésbicas nos olhos e nas bocas das pessoas. Nisso, elas diferiam de outro grupo importante do período, o Act Up, formado principalmente por gays soropositivos que invadiam laboratórios da indústria farmacêutica, quebravam portas e se acorrentavam às mesas dos químicos para exigir uma resposta médica e política à altura da epidemia. Com realidades e problemas diferentes, as Lesbian Avengers e o Act Up tinham estratégias diferentes, mas ambos os grupos acreditavam na ação direta como única forma de sobreviver numa sociedade que xs massacrava sem pudores.

 

“Sobrevivência e visibilidade”

 

Todas as reuniões das Lesbian Avengers começavam com um ritual. Primeiro, elas perguntavam se havia alguma policial disfarçada na sala. Depois, diziam em coro a definição do grupo: “As Lesbian Avengers são um grupo de ação direta focado em assuntos vitais para a sobrevivência e a visibilidade das lésbicas”.

 

 

Nessa missão, elas conseguiram a antipatia de diversos grupos mais tradicionais do movimento LGBT, principalmente aqueles que achavam que os direitos LGBTs só seriam conquistados com calma, diálogos em tom amigável e conchavos políticos. Para as Vingadoras, ainda era muito cedo para uma política polida. Havia gente sendo xingada, discriminada, demitida, espancada, assassinada diariamente.

 

 

O poeta piauiense Torquato Neto disse: “Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”. As Avengers berravam alto pra sair do matadouro dos homens. Como sobreviver se as pessoas fazem vista grossa pra você?

 

 

Sobre a questão da visibilidade, Kelly Cogswell, uma das fundadoras do grupo, diz hoje:

 

“Já faz um tempo que as pessoas desconfiam da visibilidade como objetivo. Como se essa ideia fosse datada. (…) Eu sempre pensei na visibilidade como uma plataforma, uma condição para ter voz.  Porque, se você não é visível na cultura, na política ou nas ruas, como pode demandar qualquer coisa ou participar como adulto na narrativa atual do seu país? A gente pode desaparecer, e quem iria notar? (…) Quando o Obama foi eleito, no outono de 2008, parece que todo afrodescendente de Paris [onde Kelly vivia] começou a andar com a coluna um pouco mais ereta. Algumas pessoas até sorriam, de orelha a orelha, carregando jornais com a foto dele. Independentemente do que eu pensasse dele como político, ele dava esperança às pessoas, endireitava a espinha delas. A visibilidade não é uma mudança nela mesma, mas é um tipo de caminho aberto, pelo qual as pessoas podem trilhar. Mesmo que a gente não saiba para onde. ‘A porta, ela mesma, / não faz promessas. / É só uma porta’, diz Adrienne Rich.”

 

“Nós recrutamos”

 

Em 1996, havia aproximadamente 60 grupos de Lesbian Avengers espalhados pelos Estados Unidos, cada um enfrentando seus problemas locais com a mesma estratégia de protestar de modo inesperado, barulhento e divertido.

 

 

Até hoje, a Marcha Sapatão acontece anualmente em várias cidades dos Estados Unidos.

 

 

Desde o ano passado, quando lançamos a Geni, eu me correspondo com Kelly Cogswell, que além de uma das fundadoras das Avengers é a responsável pelo projeto de documentação e registro histórico do grupo, que pode ser acessado no neste site, de onde pesquei quase todas as informações deste perfil.

 

 

Outra fonte de informações para este artigo é a autobiografia de Kelly, lançada este ano e ainda sem tradução para o português, chamada Eating Fire: My Life as a Lesbian Avenger. É um livro apaixonante, recomendo a leitura.

 

 

Kelly agora está empenhada em traduzir o site e o documentário Lesbian Avengers Eat Fire Too, de 1993, para diversas línguas, inclusive o português. Quem estiver a fim de ajudar, deixe um comentário aí embaixo que a gente entra em contato!

 

 

 

 

Ilustração: Cecilia Silveira.

Leia outros textos de Marcos Visnadi e da seção Perfil.

 

 

 

, , , , , , , , , ,