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Andrea Azevedo, feminismo, Mandah Gotsfritz, mulheres, número 16, política
Nada de novo no front
Como a pouca diversidade de trajetórias políticas reproduz e perpetua a exclusão das mulheres (e de outros grupos) no executivo brasileiro. Por Andrea Azevedo
Este pequeno artigo sobre gênero e eleições que compartilho com os (e)leitores e (e)leitoras da revista Geni foi baseado nos dados disponíveis no website do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e em reflexões que têm como base a minha dissertação de mestrado*, defendida em 2011, sobre carreiras políticas de homens e mulheres para cargos no Poder Executivo em estados e municípios brasileiros.
Apesar da análise se limitar às eleições de 2006 (neste momento, a base de dados está em processo de expansão para abranger os anos de 2010 a 2014), acredito que os resultados obtidos até agora e a literatura contemporânea sobre o tema permitem levantar algumas questões interessantes para ajudar a pensar não apenas as eleições, mas também a representação política no Brasil.
Brasil, outubro de 2014. No dia 5 desse mesmo mês, pela primeira vez na história do Brasil republicano (e colonial, e imperial), os eleitores e eleitoras brasileiros puderam escolher entre três mulheres para ocupar o cargo máximo do Executivo nacional, a Presidência da República, tendo depositado mais de 60% dos votos válidos nessas três candidatas no primeiro turno da votação. Uma evolução natural desde que em 2010 elegemos a primeira mulher presidente do Brasil, certo?
O fato de que mais da metade do eleitorado brasileiro (que é composto por uma maioria feminina) depositou seu voto em uma das três mulheres candidatas no primeiro turno das eleições presidenciais não expressa, necessariamente, uma evolução no que se refere ao papel das mulheres na política nacional. Na verdade, essas três candidaturas, que representam pouco mais de 30% das candidaturas presidenciais no ano de 2014, não se comparam aos pouco mais de 10% de mulheres candidatas aos governos estaduais, média que se mantém desde as eleições de 2006. Enquanto o número de candidaturas femininas para o legislativo se aproximou – mas ainda não atingiu – os 30% de candidatas inscritas requeridos pela lei de cotas, de 1997, o número de mulheres candidatas aos governos dos estados segue estável e pouco discutido.
Apesar de terem diminuído nessas eleições o número de reportagens jornalísticas sobre o guarda-roupa das candidatas e sobre suas respectivas habilidades domésticas, ainda existe uma dificuldade sistêmica em absorver as candidaturas femininas na política nacional, o que se expressa abertamente quando voltamos nosso olhar da Presidência da República para os demais cargos eletivos em disputa nessas eleições. O que fica claro é que o problema se refere não apenas a uma questão de gênero, mas também de desigualdade social e, sobretudo, de reprodução de quadros. Como é possível esperar por mudanças num sistema político que se alimenta dos/as candidatos/as que ele próprio produz, e que deixa tão pouco espaço para renovação? Seria o aumento da participação feminina, de fato, um passo adiante no movimento de abertura desse sistema?
Onde nascem os políticos?
Você já parou para pensar de onde veio o seu candidato ou candidata nessas eleições, ou em eleições anteriores? Em geral, as apresentações sobre a trajetória política, ou seja, sobre a maneira como o/a candidato/a iniciou sua militância e, consequentemente, construiu as redes dentro do mundo da política que o/a levaram à condição de candidato/a, é feita logo no inicio das campanhas. Essas apresentações, em geral, buscam vincular o/a candidato/a a certas lutas políticas, criando narrativas que os/as aproximam ou afastam de certas características. É fácil localizar nas campanhas as diferentes narrativas: da competência como gestor/a, da identificação com as lutas sociais ou causas específicas, da herança política (seja ela de continuidade ou de ruptura com o projeto político atual), entre outras.
Trajetórias políticas importam porque, apesar de não serem condicionantes da capacidade ou do posicionamento ideológico de um/a determinado candidato/a, nos oferecem as bases para uma interpretação dos códigos culturais e políticos relacionados à legitimação política por meio dos processos eleitorais (Coradini, 2001)**. Ou seja, uma análise das trajetórias políticas busca entender como as relações entre certas características socioeconômicas, geralmente relacionadas à ideia de liderança, podem ser convertidas em legitimação política por meio do voto.
Diferentes elementos da formação da carreira dos/as candidatos/as podem ser mobilizados nessas análises, como: escolaridade, formação acadêmica, vinculação profissional, vinculações políticas anteriores, vinculações familiares, visibilidade midiática, entre outros. Trata-se de um interessante (na opinião desta pesquisadora!) exercício de sociologia/antropologia política, que permite abordar a questão da representação a partir da perspectiva das diferentes relações sociais, econômicas e políticas que, material e simbolicamente, confluem para a formação dos quadros políticos no nosso país, seja em nível nacional, estadual ou local.
A análise das trajetórias políticas pode ser, ainda, uma ferramenta muito útil para a investigação dos mecanismos de produção e reprodução da exclusão (sistemática e estrutural) de certos grupos da vida política.
Mais mulheres no poder…
A sub-representação das mulheres na vida política pode ser entendida a partir de diferentes perspectivas. Quando analisamos a questão, por exemplo, a partir da crítica feminista à representação formal, observamos que há um choque entre a pretensão de neutralidade das instituições públicas e a efetiva participação das mulheres na vida política. Mas quais são as determinantes, sociais, econômicas e políticas, que definem os termos dessa limitação? Entre outras possibilidades de investigação, a análise das trajetórias políticas de homens e mulheres a cargos eletivos nos permite destacar alguns elementos que não apenas refletem as condições da exclusão das mulheres do campo político como também nos ajudam a entender como esse campo se organiza.
O elemento mais importante, aqui, é ressaltar que a sub-representação política das mulheres ou de qualquer outro grupo subalternizado é um limite às múltiplas possibilidades de articulação das identidades políticas a partir da representação formal – neste caso, as eleições. Isso quer dizer que, quanto maior a diversidade dos quadros políticos, maiores serão as possibilidades de articulação dos diferentes discursos (quanto maior a diversidade, maiores serão as expectativas de representatividade).
Dado o fato da sub-representação em todos os campos da vida política eleitoral nacional, o que algumas pesquisas baseadas na análise de trajetórias políticas mostram é que os caminhos das mulheres na política brasileira são muito menos variados que aqueles dos homens.
Traçando um perfil geral das 374 candidaturas analisadas para as eleições de 2006 (para os 26 estados e o Distrito Federal) e 2008 (para as 26 capitais brasileiras), temos que cerca de 15% das candidaturas eram de mulheres. Com idade média entre 49 e 51 anos de idade, três quartos de todos/as os/as candidatos/as possuíam o ensino superior completo e, em mais da metade dos casos, nas áreas de ciências humanas ou ciências sociais aplicadas. Ainda mais da metade das/os candidatas/os eram profissionais liberais e já tinham ocupado ao menos um cargo na administração pública. Um/a entre cinco postulantes era dono/a de empresa ou tinha relações familiares na vida política; um/a em cada quatro já havia participado ou participava de movimento social ou sido liderança em movimento sindical. Pouco mais de um terço dos/as candidatos/as tinham algum tipo de vínculo familiar com a vida política.
As 55 mulheres concorrentes eram, em média, mais novas, tendo entre 47 e 49 anos de idade, e com três quartos de chance de pertencerem a um partido de esquerda. Em quase todos os casos, essas candidatas cursaram o ensino superior ou ao menos começaram o curso universitário. Elas eram, em mais da metade dos casos, formadas em cursos na área das ciências sociais aplicadas, assim como a média geral das candidaturas. Uma em cada quatro era professora. Da mesma forma, uma em cada quatro já estava na vida política no momento das eleições. Duas em cada cinco mulheres candidatas já haviam ocupado cargos na administração pública; e uma em cada dez era dona de empresa. Metade dessas mulheres tiveram papel de liderança em movimento sindical, e mais da metade delas tinham alguma conexão familiar com a política.
Quando voltamos a observar homens e mulheres, mas com um corte relativo apenas aos/às eleitos/as, vemos algumas mudanças nas características das trajetórias políticas. A média de idade, aqui, é mais alta que o padrão geral, entre 51 e 53 anos de idade; o grau de escolaridade desses/as eleitos/as é alto, quase 90% deles/as cursaram o ensino superior. Metade dos eleitos/as era formado/a em cursos na área de ciências sociais aplicadas e já estava na vida política, e mais de 20% deles/as eram profissionais liberais. Um entre quatro desses/as eleitos/as atuou em algum tipo de mídia, e já participou de movimentos sociais. Talvez o dado mais relevante é que quase 50% desses/as eleitos/as tinha algum vínculo familiar com a vida política, o que demonstra que esse aspecto das trajetórias políticas é um diferenciador entre aqueles que competem e aqueles que vencem as eleições para os cargos para governos estaduais e municipais.
O que o perfil dos/as eleitos/as mostra é a tendência à criação de elites homogêneas, com trajetórias políticas muito parecidas, mesmo entre homens e mulheres. Dentre as seis mulheres eleitas, todas tinham curso superior completo, eram mais novas (com média de idade entre 46 e 48 anos), e se dividiam entre professoras e políticas, com formação em ciências sociais aplicadas e ciências humanas. Apenas uma não ocupava cargo eletivo no momento da eleição, havia participado de movimento social, ou era ligada aos meios de comunicação em seu estado. Cinco das seis eleitas tinha ligação familiar com a política. Destaca-se, mais uma vez, as relações familiares como diferenciadoras das candidaturas de homens e mulheres, tendo ainda mais importância para a inclusão das mulheres na vida pública para esses cargos.
… mas iguais aos homens no poder
Os dados levantados mostraram, afinal, uma forte tendência de homogeneização de algumas características específicas, sobretudo socioeconômicas e familiares, daqueles que conseguem não apenas competir, mas vencer a disputa eleitoral. Mas o que podemos tirar dessa conclusão?
A análise confirma a visão de que a renovação dos quadros políticos é difícil, e a homogeneização (ou seja, o fato de que as posições e trajetórias sociais daqueles/as que são eleitos/as são tão próximas, e em geral tão distantes da realidade nacional) reforça a exclusão dos grupos subalternizados que têm pouco acesso a esses espaços de liderança política.
É interessante pensar a questão das trajetórias políticas a partir de como esses elementos podem agir como limitadores à possibilidade de competitividade de candidatos/as que não se encaixam nesse perfil. Assim, chamo a atenção, com esta análise, para como os elementos que definem o acesso à vida política e às posições de liderança devem ser questionados se quisermos ver uma mudança, em termos de diversidade, no perfil das lideranças políticas no país.
No que se refere especificamente à já complexa questão da sub-representação feminina na política nacional, podemos nos perguntar: basta apenas votar e eleger mulheres? A conclusão mais interessante desta pesquisa, a partir de uma visão do pluralismo agonístico, é que a necessidade de fomentar candidaturas de mulheres também enfrenta o desafio de garantir que essas candidaturas sejam diversificadas e, ao mesmo tempo, competitivas. Se o que se espera da inclusão de grupos histórica e estruturalmente excluídos da vida política é a possibilidade de novas articulações discursivas e de identidades políticas, quais são as possibilidades de se argumentar para além da inclusão “das mulheres”, como termo genérico, e levar em consideração as diferentes experiências que esse grupo pode acomodar?
Como a própria descrição das trajetórias políticas nos mostra, uma visão da participação feminina que também leve em consideração a necessidade de garantir a representação das mulheres na pluralidade de suas identidades políticas tem de enfrentar os desafios da forma como o sistema político se organiza e o que ele privilegia. Assim, argumentar por um sistema político mais inclusivo às mulheres é argumentar por um sistema mais inclusivo para todos os grupos socialmente subalternizados, que enfrente, também, os desafios de inclusão social do país que se refletem nele.
Todos os questionamentos às bases patriarcais, racistas e classistas do sistema de representação política que os estudos relacionados à participação política de minorias no Brasil produzem são contribuições à crítica do modelo de representação tão pouco responsivo em que vivemos. A verdadeira democratização da representação política no Brasil passa pelo reconhecimento dessas desigualdades estruturais que se refletem na maneira como formamos nossas lideranças políticas e no reconhecimento dos mecanismos mais adequados para, numa verdadeira reforma política, abrirmos esse espaço para grupos historicamente excluídos do processo político.
*AZEVEDO, Andrea. 2011. Mulheres e carreiras políticas no poder executivo: representação e gênero nas eleições estaduais e municipais brasileiras. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília.
**CORADINI, Odaci Luiz. 2001. Em nome de quem?: recursos sociais no recrutamento de elites políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; NuAP (Coleção Antropologia da Política).
Andrea Azevedo é mestra em ciência política pela Universidade de Brasília e especialista em avaliação de políticas para o desenvolvimento pela University of Antwerp, na Bélgica. Trabalha e estuda, desde 2008, os temas de representação e participação política das mulheres.
Ilustração: Mandah Gotsfritz
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