Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença. ISSN 2358-2618

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Trilhas do sexo

A pornografia e o corpo do pesquisador. Por Fernando Matos

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O que é pornografia? O título do livro de Eliane Robert Moraes e Sandra Lapeiz foi, também, a pergunta que sempre me acompanhou durante minha pesquisa de mestrado. Responder a tal questionamento não é tão simples como pode parecer, entretanto, arrisco-me – assumindo todos os riscos – a rascunhar algumas possíveis definições sobre o tema. Para muitas pessoas, pornografia é um discurso que tem como eixo o sexo. Mas nem todo discurso centrado no sexo é pornográfico. Há quem acredite que pornografia é a entrada em cena de elementos que deveriam permanecer escondidos; ou consumo de produtos focados no sexo explícito; há quem advogue que pornografia é o material que leva ao gozo fácil e rápido; para outros, diz respeito ao quanto se mostra e de que forma é mostrado; há quem acredite que é o prazer pelo prazer. O conceito se torna múltiplo. Porém, é possível perceber que entre as formulações apresentadas há um elemento de ligação. Em todas elas, há alguém.

Alguém que fala, que aponta, que determina e que insere a pornografia em algum lugar. Esse alguém que diz o que é pornografia promove um deslocamento, fazendo-a transitar livremente em todas as direções, ocupar todos os espaços e não ocupar nenhum. Pode ser em um livro, em uma piada, em uma fotografia ou em um gracejo recebido na rua. Ela (a pornografia) é uma forma de enunciar valor sobre determinadas manifestações de sexualidade que, de forma geral, encontram-se onde não procuramos por ela.

A pornografia passa a ser o sexo que causa desconforto, que é praticado em sigilo e consumido em segredo. É justamente a esse consumo feito em surdina que me dediquei em minha pesquisa. Interesso-me pelo universo “paralelo” que as cidades oferecem: onde corpos roçam uns nos outros; onde é possível se masturbar eclipsado pelos arbustos ou pelo fumê dos vidros do carro; em que, para receber ou fazer sexo oral em alguém, basta entrar em um terreno ou em uma casa abandonada; onde a masturbação mútua encontra-se no mictório ao lado em algum banheiro público.

O que dizer, então, de uma pesquisa – e por tabela da pesquisadora – que decide se meter (risos) em cinemas pornôs e saunas para estudar pornografia?

Estudar sexo é algo que parece despertar a curiosidade geral, e essa curiosidade não recai apenas no objeto pesquisado, mas se encontra também em quem pesquisa: “Tu transas no cinemão?”, “E aí, como é que é lá? Tu aproveitas pra dar umas?”, “Rola muita pegação lá?”, “Diz aí, você aproveita tua pesquisa, né?” são algumas das perguntas lançadas a mim sempre que converso sobre meu campo de pesquisa. Há, de forma geral, certo interesse malicioso para descobrir até onde fui durante a pesquisa.

Experimentando em campo (ou Meu corpo que não é invisível)

Utilizar o corpo como ferramenta não só é possível como me parece um recurso dos mais importantes em pesquisas como a minha. Veja bem, não estou afirmando com isso que transar seja importante, em absoluto. Reforço que a decisão sobre transar em campo, e a forma como essa situação será conduzida na materialidade da pesquisa, é algo que diz respeito única e exclusivamente a quem pesquisa. Entretanto, recusar as possibilidades que o corpo oferece me parece equivocado. A exigência de neutralidade nesses ambientes é uma utopia acadêmica que cai por terra logo de início. Não há, até onde eu pude constatar, possibilidade de sustentação de uma pesquisa em locais de sexo em que o pesquisador ou pesquisadora anule seu corpo na tentativa de sustentação de um distanciamento metodológico – para que seu trabalho não se torne “comprometido” –, pois, nesses ambientes, as negociações são constantes e o corpo é elemento primordial nelas.

A forma como meu corpo, em alguma medida, conduziu minha pesquisa não é uma situação que possa ser ignorada. Minhas relações na rede de sexo em Goiânia eram possíveis, ou não, a partir da forma como eu era percebido e desejado. Mesmo em situações que não me despertavam o mínimo de tesão, meu corpo não era ausente. Toques, carícias, gracejos e propostas que recebi em campo foram possíveis a partir da forma como eu era lido por quem frequentava os locais que percorri durante a pesquisa.

Por que descartar minhas emoções se posso utilizá-las em meu processo de produção? Essa questão foi muito presente em minha pesquisa. Durante um tempo tentei observar o maior número possível de intercursos, sem ter muito critério de escolha – geralmente eram os que aconteciam mais próximo de onde me encontrava. Entretanto, depois de um tempo, pude perceber que aqueles que não me despertavam interesse ou me excitavam foram sendo eliminados de minha rotina, até quase ao ponto de só observar o que de fato me dava prazer.

Minhas primeiras experiências em campo também não foram confortáveis, pois ocupava um lugar ambivalente de pesquisador e alguém cujos desejos eram ativados quase sempre – ok, eram ativados o tempo inteiro! A questão que me causava incômodo não foi não saber como lidar com meu desejo, mas, de alguma forma, sentir que essa decisão tornava-se normativa-metodológica, e não mais pessoal.

Parece-me estranho que trabalhos que propõem a discussão da disciplina e do biopoder estejam eles próprios submetidos a certa domesticação. Pensando em termos foucaultianos, tomo a academia como centro nevrálgico para a emanação de discursos de controle sobre o corpo ao submeter seus pesquisadores e pesquisadoras ao celibato a partir de convenções éticas que parecem se aplicar com maior rigor ao comportamento sexual nos ambientes de pesquisa.

Pergunto-me: se estudasse telenovelas, por exemplo, em vez de práticas sexuais em ambiente públicos, comerciais ou não, seria tão questionado sobre meu comportamento durante a pesquisa? Se para pesquisar novela tenho que assistir a ela, e isso não parece causar estranhamento e muito menos deslegitimações, então por que nos terrenos do sexo tenho que refrear meus desejos e prazeres?

O que torna o sexo tão perigoso a ponto de ser camuflado, escondido, perseguido e vigiado durante as pesquisas? Após quase dois anos de pesquisa me senti mais confortável em dialogar a partir do meu próprio prazer em campo. Era estranhíssimo ter minha reflexão construída a partir da crítica às forças de dominação do sexo – e como uma ferramenta política na luta pela legitimação de práticas vistas com desconfiança – e, paradoxalmente, tornar meu desejo invisível.

Eu me encontrava em ambientes cujos corpos e atmosfera eram sempre convites a jogos e brincadeiras nas tardes goianienses. Gostava dos toques, dos cheiros, dos roçares, das putarias faladas ao pé do ouvido. Sentir era meu alvo de estudo, isso implicava – ainda que para alguns pesquisadores e pesquisadoras isso seja uma deturpação dos valores acadêmicos – que meu próprio prazer fazia parte dessa cena. Sou sujeito de minha pesquisa antes mesmo de sua materialidade. Independentemente da forma como eu gozava – e gozar implica um universo enorme de possibilidades –, eu também era um agente pornô nesses locais.

Como eu gozava? Convide-me pra uma tarde relaxante em uma sauna ou cinema pornô e, quem sabe, seu corpo pode ser uma das respostas.

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Fernando Matos é formado em comunicação social, habilitação em jornalismo, pela Universidade Federal do Maranhão, mestre em mídia e cultura pela Universidade Federal de Goiás, ativista do grupo Colcha de Retalhos – A UFG Fora do Armário e adora gastar horas em saunas e outros locais de pegação urbanos. E-mail: matos.fernandoribeiro@yahoo.com.br.

A seção Acadêmicxs publica relatos de pesquisas acadêmicas sobre gênero e sexualidade. Quer contar a sua pesquisa também? Escreve pra gente em geni.revista@gmail.com.

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