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Cinema inflamável
Sobre uma projeção do curta Eu não quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro. Por Lia Urbini
Minha tia é coordenadora pedagógica de uma escola municipal na zona sul de São Paulo. Sempre trabalhou como professora do ensino fundamental da rede pública, até que assumiu o cargo de coordenadora, depois de cursar uma faculdade de pedagogia um pouco antes dos seus 40 anos.
Sei que, além do trabalho nas escolas, ela também vendia pão de queijo nas ruas do bairro em que morava, a Vila Mariana; e que o ex-presidente FHC era o único das redondezas que não comprava por desconfiar da produção caseira. Minha tia também foi a Branca de Neve numa equipe de animação de festas que a contratava para dançar com sete atores anões, e eles trabalharam até o dia em que a Kombi na qual andavam bateu num muro, todos se acidentaram e deixaram o trabalho. Por serem histórias incomuns, eram sempre essas as que eram contadas.
Da sua rotina de professora eu não sabia muita coisa, imagino que fosse considerada muito pesada pros encontros de família, pois ela dizia que, quando pensava nos alunos, só tinha histórias de preconceito e agressão. A situação mudou, no entanto, quando eu também me tornei professora da rede pública. Passamos a conversar sobre as situações vividas, e uma das que ouvi tem bastante a ver com os temas da Geni, então decidi relatá-la aqui.
Na mesma escola em que minha tia é coordenadora do período da manhã, funcionava no período noturno o Ensino de Jovens e Adultos. Um dos alunos do EJA, que trabalhava como cobrador de ônibus de uma linha que transportava muitos alunos do período da manhã, foi procurar a coordenação para solicitar ajuda. Aparentemente por ser gay, um dos alunos da manhã voltava sempre das aulas apanhando de colegas mais velhos, e o cobrador não conseguia interferir na confusão a ponto de acabar com ela. Pediu então para que alguma medida fosse tomada pela equipe da escola.
Obviamente já se tinha conhecimento de alguns eventos de agressão relacionados à homofobia entre essas crianças. Mas a solicitação do aluno do noturno fez com que minha tia tivesse algum respaldo para encampar uma atividade sobre o tema nas salas de 7º e 8º ano, abrangendo as turmas dos alunos agressores. Ela não obteve apoio dos demais professores, que não achavam necessário ou não se sentiam confortáveis para realizar nenhum trabalho relacionado à homofobia com os alunos, e resolveu desenvolver ela mesma uma discussão, precedida por um curta-metragem que conheceu nas aulas da faculdade, o Eu não quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro.
Alunos reunidos na biblioteca, espaço possível para estender uma tela de projeção e exibir o vídeo. A sessão começa. O curta tem cerca de 17 minutos e não consegue ser passado até o final. Durante o filme, a zoeira comum depois de qualquer menção a carinho e desejo entre dois meninos, e, no momento em que há o único beijo entre dois atores (e um selinho, ainda por cima), alguns alunos se revoltam e vão em direção à tela, pegam estiletes e rasgam partes dela. A coordenadora consegue fazer com que eles diminuam a exaltação suspendendo a atividade, devolvendo os alunos para as salas e levando alguns para a diretoria, para receberem medidas punitivas. No dia seguinte, algumas mães de alunos aguardam minha tia na porta da escola, exigindo explicações por ela ter “exibido filme de sem-vergonhice, de viado”, ameaçando-a verbal e fisicamente; dentre os xingamentos, o que lembro do relato é que a chamaram bastante de vagabunda. E grande parte dos demais professores e gestores diziam coisas como “Não avisamos? Não inventa mais essas coisas”.
Mais do que para avaliarmos as possíveis motivações, erros e acertos de cada um/a dxs envolvidxs no ocorrido, conto esta história para pensarmos um pouco no contexto de produção e recepção de filmes brasileiros com temática LGBT.
O mesmo curta, muito bem recebido e premiado nos principais festivais nacionais e internacionais de cinema, também já havia sido censurado após pressão religiosa sobre o governo do estado do Acre, ao ser confundido, em atividades da rede de escolas públicas, com os curtas do igualmente censurado programa Escola sem Homofobia, do Ministério da Educação.
Se fôssemos procurar explicações para essas diferentes recepções, uma delas estaria na grande distância entre o público específico de festivais e o grande público no Brasil, fundamentalmente em termos de formação. Não conheço estudos sobre o perfil dos cineastas de festivais, mas, se tivesse que arriscar suas características, seriam majoritariamente cineastas universitários de classe média ou alta, que resolveram não se alinhar ao padrão televisivo e comercial dominante e produziram, com todas as diferenças entre si, o que costuma ser classificado como filmes alternativos ou experimentais. Muitas vezes recorrendo aos editais de produção e circulação do governo, atingem um público também universitário, de classe média ou alta. Exibem suas produções em mostras específicas, em centros ou instituições culturais e, raramente, nos grandes cinemas comerciais. Com programas governamentais de formação e produção audiovisual fora dos grandes eixos de produção, funcionando em assentamentos, aldeias, por exemplo, e com as iniciativas fragmentadas e autogestionadas dos cineclubes e coletivos audiovisuais, além da razoável acessibilidade de se obter equipamentos básicos para realizar e divulgar um filme, outros perfis parecem progressivamente se consolidar, mas ainda sem tanta expressão quanto o primeiro.
Essas características, se puderem ser confirmadas, configuram um cenário no qual, por mais bem intencionados e guerreiros que sejam estes cineastas, eles carecem de formação, estímulos e oportunidades para criar conjuntamente fora dos seus círculos habituais. Eles também não encontram condições favoráveis para pensar etapas pré e pós-produção dos filmes de maneira coletivizada e plural, acrescentando à obra finalizada processos de formação de público e de produtores, num diálogo horizontal a partir das experiências com a realização e projeção das suas obras. Quando algo disso acontece, é na contramão da lógica do ensimesmamento que a rotina de sobrevivência lhes imprime; momentos raros de respiro e troca, que ainda estão longe de se generalizar.
As qualidades do curta de Daniel Ribeiro favoreceram sua circulação em padrões acima da média para produções análogas. Foi incluído também em programas do governo para que professores o escolhessem em suas atividades escolares. No entanto, sem que o restante da estrutura de produção cinematográfica se altere em suas especificidades, assim como a estrutura de produção de conhecimento, em termos mais gerais, no sentido de se horizontalizar, obras como a dele acabam como mensagens na garrafa. Assim como a recepção do público, outras mensagens cifradas, que no máximo são classificadas como sinais de vandalismo, de falta de sensibilidade ou de cultura. E todas essas garrafas ficam boiando por aí, cada uma com seus conteúdos embutidos, até virarem molotov.
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Ilustradora convidada: Ruth Steyer.