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Puta, santa, livre
Uma breve história do feminismo abolicionista e de sua cruzada contra a prostituição. Por Marcos Visnadi
Em um artigo de 1913, a escritora e jornalista inglesa Rebecca West (1892-1983) ironizou ataques em forma de confusão conceitual contra o feminismo: “Eu mesma nunca consegui descobrir o que é, precisamente, o feminismo. Só sei que as pessoas me chamam de feminista sempre que eu expresso sentimentos diferentes dos de um capacho ou de uma prostituta”.
Na coluna O Cérvix da Questão da revista Geni número zero, Clara Lobo faz uma pergunta: “Como meninas de nove, dez anos conseguem identificar e punir vagabundas?”. Vou tentar responder um pouco essa questão neste texto, mas aqui não vou falar do machismo que mulheres não feministas reproduzem, e sim do machismo existente dentro do próprio movimento feminista.
Epa, espera aí! Machismo feminista? Bem, antes de mais nada, vale lembrar que o feminismo não é um partido político com um programa único nem tem uma carta de intenções a ser apresentada sempre que alguém perguntar “mas, afinal, o que quer o feminismo?”. O movimento feminista vem se construindo há pelo menos três séculos, digamos, desde que Olympe de Gouges escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em meio à Revolução Francesa e em resposta aos homens que queriam revolucionar absolutamente tudo – desde que ninguém mexesse com a submissão forçada da mulher.
Mas, afinal, o que quer o feminismo?
Basicamente, é disso que o movimento feminista trata, em qualquer parte: o fim da desigualdade entre homens e mulheres. E, enquanto o feminismo é um movimento de emancipação política, o machismo é a estrutura de dominação que sustenta essa desigualdade. Por isso, machismo e femininismo, apesar da semelhança morfológica, não são opostos conceituais. O primeiro é um sistema; o segundo, uma ferramenta para parar as engrenagens desse sistema.
Então o machismo está em toda parte, é prévio à nossa vontade e o reproduzimos sem perceber, até que adotemos voluntariamente posturas que o interrompam, que o desmontem e que rompam com a opressão de gênero. Ou seja, posturas feministas.
Os vários grupos e ramos do femininismo encontraram diferentes jeitos de lutar contra a opressão. Às vezes, esses jeitos são contraditórios entre si. Hoje em dia, por exemplo, há mulheres feministas que não admitem que homens façam parte dessa luta; há outras, contudo, que acham que qualquer pessoa pode aderir ao feminismo, pois este é uma luta política, não um dado biológico. Eu, que até agora tenho sido homem e feminista, obviamente concordo com o segundo grupo.
Mas esse é só um dos muitos exemplos de discordâncias internas que existem dentro desse movimento (e de qualquer outro, ainda bem, porque é na diversidade que crescemos, não é?). Mulheres negras e mulheres brancas sofrem o mesmo tipo de opressão? Mulheres transexuais são iguais a mulheres cissexuais? Mulheres de países árabes são mais oprimidas que mulheres de países cristãos? E as mulheres que se prostituem, são mais exploradas que as outras? A cada uma dessas questões, ativistas dão respostas muitas vezes divergentes, que merecem ser conhecidas e debatidas.
Especificamente com relação à prostituição, uma corrente de pensamento é pouco conhecida, mas dá muito pano pra manga, e seus argumentos às vezes são utilizados sem que as pessoas saibam de onde vêm. Trata-se do feminismo abolicionista.
Prostitutas na ilha da rainha
O termo remete à Federação Abolicionista Internacional, fundada na Inglaterra em 1875, quando vigoravam naquele país as Leis de Doenças Contagiosas (LDC), que obrigavam prostitutas a ser examinadas por médicos que, se constatassem alguma doença sexualmente transmissível (DST), poderiam submetê-las a uma internação compulsória de até três meses.
Essas leis, instauradas em 1864, foram feitas com a desculpa de conter epidemias de DSTs nas Forças Armadas inglesas, mas revelaram o estado de dominação a que as mulheres estavam submetidas na sociedade britânica: qualquer uma podia ser detida pela polícia, acusada de ser prostituta. E, como é de se imaginar, as punições eram destinadas apenas às mulheres, já que um homem com DST não sofria qualquer tipo de censura. Um depoimento da época mostra o estado de terror instaurado contra as mulheres:
“São os homens, e só os homens, do primeiro ao último, com quem nós temos que lidar! Para agradar um homem eu errei, no começo, e depois fui passada de um homem para outro. Policiais homens põem as mãos em nós. Por homens nós somos examinadas, manipuladas, medicadas e ordenadas. No hospital, é de novo um homem quem reza e lê a Bíblia para nós. Nós somos levadas diante de magistrados que são homens, e nós nunca nos livramos das mãos dos homens”.
As principais vozes contra as LDC se reuniram, em 1869, para formar a Ladie’s National Association (LNA), grupo que lançou, em 1870, um manifesto que daria o tom da oposição a essas leis:
“A lei enquadra ostensivamente uma certa classe de mulheres, mas, para atingir essa classe, todas as mulheres que vivem nos distritos onde vigora são submetidas a ela. Qualquer mulher pode ser arrastada até a corte e obrigada a provar que ela não é uma prostituta comum. O magistrado pode condená-la se o policial jurar que possui ‘bons motivos para crer’ que ela é uma prostituta. (…) Mulheres presas sob falsas acusações têm se aterrorizado a tal ponto com a ideia de ir ao julgamento público necessário para provar sua inocência, que têm, intimidadas pela polícia, se despojado de sua reputação e de sua liberdade, comprometendo-se com o que se chama ‘submissão voluntária’, apresentando-se periodicamente para exame médico por 12 meses”.
Assim, a LNA ganhou força ao argumentar que as Leis de Doenças Contagiosas não restringiam apenas a liberdade das prostitutas, mas a de todas as mulheres. No entanto, a argumentação que segue não se centra na liberdade das mulheres, prostitutas ou não, mas na condenação moral da prostituição. A LNA ataca não só o cerceamento às mulheres, mas também – e principalmente – a legalização da prostituição, que a lei acarreta.
“Mulheres que, por temor à prisão, foram induzidas a registrar-se como prostitutas comuns, agora seguem com seu ‘comércio’ sancionadas pelo Parlamento; e as casas onde elas congregam, contanto que os médicos do governo estejam satisfeitos com a saúde de suas internas, gozam, praticamente, de uma proteção tão completa quanto uma igreja ou uma escola.”
O prostíbulo e a igreja
As Leis de Doenças Contagiosas foram enfim revogadas no ano de 1886. Por um lado, isso representou um avanço para a organização das mulheres na Inglaterra, e as feministas britânicas ganharam projeção no resto da Europa e também nos Estados Unidos. Por outro lado, no entanto, elas continuaram sua cruzada moral contra a prostituição.
Uma das principais ativistas desse período, Josephine Butler (1828-1906), fundadora da LNA e da Federação Abolicionista Internacional, empenhou-se particularmente nessa cruzada. Burguesa, vitoriana, cristã devota, Butler advogava pela educação moral, pela castidade (particularmente a das mulheres) e pela extinção do “vício da prostituição”, como nestas palavras dirigidas por ela ao Conselho Internacional de Mulheres em Washington, em 1888:
“Não só temos visto (…) homens e mulheres de muitos idiomas unindo-se para pedir e trabalhar pela abolição da prostituição regulamentada – e, com isso, para finalmente abolir a prostituição ela mesma –, mas temos visto cidades inteiras (…) reconhecendo o crime que cometeram diante de Deus (…)”.
Josephine Butler é um exemplo de como a luta feminista, impregnada de pressupostos patriarcais, pode distorcer-se a ponto de reafirmar estruturas de dominação, em lugar de rompê-las. Não por acaso, o grupo de Butler tinha apenas mulheres burguesas e cristãs como membros, e excluía as prostitutas, considerando-as praticantes de um vício a ser controlado.
Foi só a partir dos anos 1970 que, em vários países – e associando-se internacionalmente –, prostitutas começaram a organizar seus próprios movimentos, reivindicando não a abolição, mas a legitimidade de seus trabalhos. O argumento base delas é o mesmo de boa parte de outras reivindicações feministas (como a legalização do aborto e a liberdade sexual): a mulher é livre para decidir o que fazer com seu próprio corpo, não devendo estar submetida à vontade da Igreja, do Estado, dos homens – ou mesmo de outras mulheres.
Puta não é capacho
No Brasil, a maior representante da luta pelos direitos das prostitutas é Gabriela Leite, que dá nome ao projeto de lei do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) que regulamenta a atividade dxs profissionais do sexo. Gabriela foi uma das primeiras a dar dimensão política à sua profissão, desmistificando os discursos de vitimização, herança do femininismo abolicionista, que tratam a mulher que se prostitui como vítima da vontade alheia, e não como sujeito de sua própria vontade.
Hoje, cem anos após Rebecca West ter escrito que ser feminista é diferente de ser um capacho ou de ser prostituta, já pudemos ouvir muitos discursos feministas de mulheres que se prostituem. Acho que metade da fala de West, contudo, ainda pode ser aproveitada: para qualquer mulher, ser feminista é expressar sentimentos diferentes dos de um capacho. Porque, para o machismo, qualquer mulher que não se submeta é, potencialmente, uma… puta.
Gabriela Leite, num discurso na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, comenta o uso pejorativo do termo: “Puta, para as pessoas, é nada, não chega nem a ser mulher. E eu gosto muito da palavra puta, porque eu quero que um dia essa palavra se torne uma palavra bonita. Porque você não faz movimento nenhum se escondendo embaixo da mesa”.
Sem se esconder embaixo da mesa – ou do capacho –, prostitutas têm posto em xeque diversas premissas de um feminismo ainda arraigado em heranças patriarcais. Retomando a questão de Clara Lobo, eu diria que punir vagabundas e tentar salvá-las de sua vagabundice são duas faces de uma mesma moeda. E, aproveitando um grito frequente nas Marchas das Vadias, me solidarizo com as prostitutas que lutam por seus direitos: se ser puta é ser livre, somos todxs putas.
*Agradeço a Cida Vieira, presidenta da Associação de Prostitutas de Minas Gerais, quem primeiro me falou do feminismo abolicionista.
PARA SABER MAIS
“Entrevista com uma meretriz”, no blog Escreva Lola Escreva. Parte 1: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/02/entrevista-com-uma-meretriz.html. Parte 2: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/02/o-feminismo-e-empoderador-para.html. Parte 3: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/02/a-prostituicao-que-temos-hoje-pode.html
Feminism, Marriage and the Law in Victorian England, livro de Mary Lyndon Shanley. Capítulo três, “The Campaign to Repeal the Contagious Diseases Acts”.
Obras de Josephine Butler (em inglês).
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